Se em 2007 o Festival de Cannes comemorou a sua própria trajetória de 60 anos redondos, em 2008 quem tem motivos para celebrar é o cinema latino-americano, que marca a sua presença mais forte em muitos anos na 61ª edição do evento mais midiatizado do mundo, que começa nesta quarta-feira.
Quatro dos 22 filmes da Mostra Competitiva, a mais importante do festival, vêm do continente. A começar pelo filme de abertura, "Ensaio sobre a Cegueira" (Blindness), a produção internacional dirigida pelo brasileiro Fernando Meirelles (o mesmo de "Cidade de Deus") e adaptada do best seller de José Saramago, que teve muitas cenas rodadas em São Paulo. E "Linha de Passe", sétimo longa-metragem de Walter Salles ("Central do Brasil") e o terceiro dirigido em parceria com Daniela Thomas. O filme retrata o cotidiano de quatro irmãos na periferia de São Paulo lutando por seus sonhos de ascensão, que passam pelo futebol.
Além dos dois diretores brasileiros, dois argentinos em competição: Lucrecia Martel, que já competiu com "A Menina Santa" e volta com o misterioso "A Mulher Sem Cabeça"; e Pablo Trapero, estreando na competição com "Leonera", sobre presidiárias que criam seus filhos no cárcere. Por fim, um mexicano no júri, quem sabe defendendo o cinema da região: Alfonso Cuarón, diretor de "E Sua Mãe Também", que possui sólida carreira internacional e já dirigiu até um dos episódios da série Harry Potter.
E não pára por aí: um longa mexicano e um brasileiro na mostra Um Certo Olhar ("A Festa da Menina Morta", de Matheus Nachtergaele); um mexicano e um uruguaio na Competição de Curtas-Metragens. Na paralela Quinzena dos Realizadores, presença mais forte ainda, com cinco filmes: dois longas argentinos, um uruguaio, um chileno e um curta brasileiro. Pra terminar, quatro filmes em outra mostra paralela, a Semana da Crítica: dois curtas brasileiros e dois filmes argentinos (um longa e um curta).
Júri sedento de novidadesÉ praticamente impossível arriscar possíveis vencedores antes do festival começar. Novos talentos podem surpreender com força total - como no ano passado, em que a Palma de Ouro foi para o estreante romeno "4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias". E cineastas consagrados podem decepcionar.
Pelo júri, no entanto, pode-se ter uma idéia de quem pode ou não agradar. O ator e diretor americano Sean Penn é conhecido pelo gosto por filmes inovadores, e está acompanhado por alguns membros jovens, com 40 anos ou menos, que podem adotar uma postura mais ousada na escolha dos prêmios: as atrizes Natalie Portman e Jeanne Balibar, a iraniana Marjane Satrapi, o tailandês (tente pronunciar este nome) Apichatpong Weerasethakul.
Esse gosto pela ousadia da juventude e dos primeiros filmes pode favorecer o estreante americano Charlie Kaufman ("Synechdoche, New York"); o novato Eric Khoo, de Cingapura ("My Magic"); os argentinos Trapero e Martel, ou mesmo os jovens e promissores italianos Paolo Sorrentino ("Il Divo") e Matteo Garrone ("Gomorra"). Mas Sean Penn e sua trupe também podem decidir finalmente fazer justiça a um veterano como Clint Eastwood, que compete pela quinta vez em Cannes e nunca levou mais do que um prêmio técnico para "Bird", há 20 anos. Penn nutre uma grande admiração pelo cineasta desde que trabalhou com ele em "Sobre Meninos e Lobos" (Mystic River).
Menos chances podem ter aqueles que já tiveram a felicidade de levar sua Palma de Ouro pra casa: o alemão Wim Wenders, que venceu em 1984 com "Paris Texas" e volta com "The Palermo Shooting"; Steven Soderbergh, ganhador com "sexo, mentiras & videotape" (1989), de volta com "Che", épico sobre Che Guevara; os irmãos belgas Luc e Jean-Pierre Dardenne, bicampeões ("Rosetta" e "A Criança"), competindo desta vez com "O Silêncio de Lorna"; ou mesmo o chinês Jia Zhang-Ke, recentemente premiado em outro grande festival, Veneza, com "Em Busca da Vida" e o documetário "Useless" (Inútil).
Blockbusters e glamourNem só de cinema de arte, no entanto, vive Cannes. Há muitos anos Hollywood usa o festival como plataforma de seus lançamentos - e, em troca, fornece o brilho de seus astros. Neste ano, Steven Spielberg e Harrison Ford desembarcam na Croisette para lançar quase 20 anos depois a quarta aventura de Indiana Jones, "O Reino da Caveira de Cristal", acompanhados de Cate Blanchett e do astro em ascensão Shia LaBeouf. Angelina Jolie, Dustin Hoffman e Jack Black vão prestigiar a nova animação que dublaram, "Kung Fu Panda". E Woody Allen deve trazer pelo menos três nomes de peso para a estréia de "Vicky Cristina Barcelona", seu primeiro filme rodado na Espanha: Scarlett Johansson, Javier Bardem e Penélope Cruz.
Fechando o cicloCompetições à parte, Cannes nunca perde a chance de render homenagem à própria história, e a oportunidade este ano é das melhores: completam-se 40 anos do Maio de 68, quando Godard e Truffaut lideraram os protestos dos artistas em solidariedade aos estudantes e trabalhadores de Paris e forçaram a interrupção do festival. O filme interrompido - "Peppermint Frappé", do espanhol Carlos Saura - e mais quatro outros que nem chegaram a ser exibidos terão sua chance na seção Cannes Classics, três deles com a presença de seus diretores. Não se surpreenda se o evento roubar os holofotes de filmes novinhos em folha. É Cannes reconciliando-se com sua própria história.