Retratista dos Estados Unidos, Martin Scorsese chega aos 70 anos ainda devoto dos filmes
Desde "Sexy e Marginal", era fácil ver em Martin Scorsese, que completa 70 anos neste sábado (17), um diretor de cinema invulgar: com os parcos recursos obtidos pela produção de Roger Corman, colocava em cena uma história tipo "Bonnie & Clyde", mas mostrava-se original em relação ao filme de Arthur Penn. Tinha essa rapidez, esse sentido de urgência, as elipses características dos filmes "B".
Aos poucos, Scorsese ganhou força e criou sua própria turma. “Caminhos Perigosos” (1973) já tinha De Niro e Harvey Keitel, dois atores que figurariam na galeria dos permanentes de seus filmes. “Alice Não Mora Mais Aqui” já era o passaporte para a consagração junto a um público mais amplo. Com "Taxi Driver", a seguir, já ninguém tinha dúvida de que, sim, tratava-se de alguém que a história do cinema deixaria passar em branco.
O que veio a seguir confirmou fartamente esse prognóstico: a atenção à pequena gente (marginais, lutadores de boxe, jogadores de sinuca etc.) talvez seja sua marca maior. Com ela esquadrinhou a América e, sobretudo, Nova York, a cidade onde nasceu e cresceu pobre, num bairro onde, como disse, quem não virava gângster, virava padre.
Não por acaso, seus filmes foram marcados pela violência, o que só mudou ao longo dos anos quando passou a perseguir um Oscar que, afinal, merecia há muito tempo e que sempre acabava em mãos infinitamente menos hábeis (dá para acreditar que ele tenha perdido, certa vez, para o musical "Chicago"? E alguém ainda lembra desse filme?). Aí Marty, como é chamado, entrou em umas trips meio estranhas, entre elas um filme no Tibete. Que aliás não ganhou Oscar também.
O Oscar chegou tarde, admita-se, com "Os Infiltrados", um filme secundário em relação á sua obra (e, no mais, violento). Mas não foi isso que chegou tarde, e sim porque o que mais interessava ao cineasta era que sua mãe o visse com a estatueta – e quando ganhou ela já tinha morrido: o Oscar é cruel assim.
Mas não é pelo Oscar que Scorsese ficará. É, para começar, pelos seus filmes. Mas não só por eles. Ele é, entre os cineastas, o protótipo do amante do cinema. Capaz de discorrer horas a fio sobre a história do cinema americano (o que explica em boa parte sua obra, aliás). Ou sobre o cinema italiano, que via desde a infância.
Mas é do cinema americano que, afinal, ele se tornou uma espécie de memória viva. Muito justo: foi o amor ao cinema, que, afinal, o livrou de ser gângster ou padre, e que também se manifestou quando, já cineasta consagrado, passou a comprar cópias de filmes, inclusive ou sobretudo filmes ameaçados de desaparecimento, até “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de Glauber Rocha. Sabia muito bem que a sobrevivência dos filmes, sua preservação, é tão importante e vital quanto fazê-los. E que isso não ocorre de forma espontânea: é preciso correr atrás.
Seria possível destacar vários filmes na carreira de Scorsese: o seu amor pelo musical aparece no magnífico “New York, New York”, um inexplicável fracasso. Sua visão do gangsterismo, tão oposta à de Coppola, está inteira em “Os Bons Companheiros” (a máfia sem romantismo, tocada a poder sobretudo de brutalidade e da boçalidade), e reaparece com tintas mais maduras em “Cassino”.
VEJA TRAILER DE "A INVENÇÃO DE HUGO CABRET", ÚLTIMO DE SCORSESE
Se a montagem tornou-se mais nervosa, quase ansiosa, com o passar do tempo, pessoalmente Marty soube preservar a calma como poucos em certos momentos. O principal deles: quando subiu ao palco para entregar a Elia Kazan o Oscar especial pela carreira. A platéia dividiu-se. Metade aplaudia. Metade vaiava Kazan pelo fato de ter delatado, no começo dos anos 1950, colegas à Comissão de Atividades Anti-Americanas do Senado (a famosa Comissão McCarthy da Caça às Bruxas). Isso não interessava a Marty. Antes havia o grande cineasta.
Antes, para Scorsese, sempre existiram os cineastas. A prova de sua moralidade, de sua integridade vem de seus atos: os filmes. Kazan passara por essa prova, e Scorsese não poderia senão aplaudi-lo. Assim com qualquer um que ame o cinema: tem de aplaudir Scorsese em seus 70 anos. E esperar por mais 70, férteis como foram estes primeiros.
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