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Lúcia Murat destaca jovens e cita erros de sua geração em novo filme sobre ditadura

Mário Barra

Do UOL, em São Paulo

12/06/2013 12h21

Quase 25 anos depois de gravar "Que Bom Te Ver Viva", filme que traz depoimentos de perseguidos durante a ditadura militar no Brasil, a diretora Lúcia Murat retorna às sequelas deixadas pela tortura na época com o filme "A Memória Que Me Contam", que estreia nos cinemas brasileiros na sexta-feira (14). Ainda que o espírito de denúncia permaneça, a diferença está na vontade da cineasta em apontar contradições no discurso da geração que viveu o período e colocar o ponto de vista dos mais jovens.

"Esse filme inaugura um olhar mais contemporâneo. No 'Que Bom Te Ver Viva', a ditadura ainda era muito presente. Eu cheguei a receber ameaças por telefone. Do fim do governo militar, tinham passado cinco anos", conta a cineasta em entrevista ao UOL. "O filme que lanço agora não é de época. Ele somente traz o olhar de quem passou por tudo isso há 43 anos. A visão de que todo esse período que passou."

A data há mais de quatro décadas citada por Lúcia se refere à perseguição que ela mesma sofreu na década de 1960. Tudo continua muito vivo para a diretora, que concedeu somente a duas semanas atrás um depoimento à Comissão Estadual da Verdade no Rio de Janeiro, quando relatou em detalhes as torturas sofridas ao ser detida no DOI-Codi na capital fluminense.

TRAILER DE "A MEMÓRIA QUE ME CONTAM"

Mas longe do saudosismo, Lúcia enxergou no filme a oportunidade de apontar também erros de sua geração, preconceitos velados que não são eram tão evidentes como no caso do trato com homossexuais. "Havia esse olhar sobre a minha geração, que de éramos somente libertários, como se não houvesse todos os preconceitos da época", afirma."Achei importante como essa questão é vista pela geração de hoje e comparar com a visão do passado, mesmo entre gente tida como intelectualizada."

O longa, que mostra a história de um grupo de amigos que se reúne ao redor de uma companheira de resistência que está morrendo depois de uma vida com sequelas, também serviu para Lúcia apresentar uma visão menos caricata dos jovens ligados a pais perseguidos, quase sempre tidos como "drogado malucos ou engolidos pelo mercado financeiro", nas palavras da própria cineasta. "O olhar que você normalmente não vê é o dos filhos. Uma galera mais nova, que olha o passado e o presente de outra maneira. E daí nasce um conflito", explica.

  • A diretora Lúcia Murat no set de filmagem do filme "A Memória Que Me Contam"

Sentimento de culpa

Para Irene Ravache, atriz que trabalhou com Lúcia em "Que Bom Te Ver Viva", o filme traz personagens que precisam lidar com o sentimento de culpa por terem sobrevivido à tortura. "Eles estão perdendo alguém que, simbolicamente, é um marco. Os personagens precisam viver com o fato de terem sobrevivido 'bem'. Isso é um problema para qualquer sobrevivente", diz.

Vera Sílvia Magalhães

O filme é dedicado à memória de Vera Sílvia Magalhães, integrante do grupo MR-8, responsável pelo sequestro do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick em 1969.

A guerrilheira, morta em 2007 após um infarto, é representada não só pela personagem Ana, que agoniza em uma cama de hospital aos 60 anos, como pela interpretação de Simone Spoladore, que dá vida a uma versão mais jovem da mulher, recorrente nos pensamentos dos companheiros. "Para mim, a Ana é um personagem-poema", diz a atriz sobre o trabalho. "Ao mesmo tempo em que ela tem uma densidade e uma história própria muito intensa, ela demonstra também leveza nas atitudes. Daí ela ser quase como um poema."

Para construir a Ana com 30 anos, uma personagem quase sempre tranquila e que debate sentimentos de culpa e questões existenciais com os demais, Spoladore se baseou totalmente nas orientações de Lúcia. "Não tentei reinterpretar a Ana. Quando perguntei à diretora se eu precisaria imitar ou algo do gênero, a resposta foi não", conta. "A minha aproximação foi mais emocional mesmo, me identifiquei com a dor dela."

Simone cita uma cena gravada dentro de uma piscina como a metáfora mais forte do que a atriz notou sobre a essência de Vera Silvia. "Vi vídeos delas falando, me alimentei daquilo. Algo que ficou forte pra mim é essa mesma sensação de sufoco que temos dentro da água. É como se ela estivesse transbordando mesmo, com muita emoção, mágoa e dor", explica.

A personagem de Irene, que recebe o mesmo nome da atriz, marca a presença da própria diretora na história. "Ela escolheu tudo, disse que eu ia fazer a personagem de cara lavada, com um óculos que ela pegou", conta a atriz, que explica a presença da diretora na personagem, também uma cineasta. "Tem gente que acha a gente parecida. Nós não somos, mas no filme eu fui uma executora das ideias dela. Não senti a necessidade de dar palpite, era muito claro o que ela queria."

Para explicar melhor como o sentimento de culpa dos personagens do filme e a obra do acaso se misturam, Irene cita uma história pessoal, vivida quando era garota nas ruas do Rio de Janeiro.

"Eu gostava muito de ficar de pé no último vagão do bonde. Um dia, eu tirei o sapato para poder coçar a batata da perna com o pé. O bonde andou e, de alguma forma, o sapato foi esmigalhado", lembra a atriz.

"Não notei onde eu tinha colocado o pé, ali havia algo de frágil e solto no chão. O que me fez tirar o sapato? Isso foi acaso? Esse tipo de coisa mexe muito com você. Assim como os personagens no filme são tocados por não terem sofrido tanto quanto a Ana, eles querem entender o porquê."

Conflitos de gerações e ativismo

Lúcia convocou a escritora Tatiana Salem Levy para escrever parte do roteiro do longa. A ideia era trazer alguém que pudesse trazer a visão dos mais jovens sobre um período que não foi vivido por eles.

Mesmo sem citar as recentes manifestações realizadas em São Paulo e em outras cidades do país sobre questões como o aumento de tarifas de transporte público, Lúcia rechaça a crença de que nada restou para se fazer no ativismo desde o fim da ditadura.

"Acho importante a visão autoritária de quem viveu ser desmistificada. Essa coisa de que nós fizemos tudo, que a próxima geração não tem nada a fazer", afirma a diretora. Já Irene Ravache cita que, no filme, esse questionamento sobre o que fazer na política parte dos próprios jovens.  "No filme, os jovens sentem que também são uma força", comenta.

VEJA CENAS DE "A MEMÓRIA QUE ME CONTAM"

Mas Irene acredita que há uma dificuldade maior em saber o que combater nos dias de hoje. "Antes, o nosso inimigo tinha nome, sobrenome e endereço. Hoje você convive, dorme e elege o inimigo. Nós continuamos escolhendo corruptos, bandidos. Essa permissividade é maléfica", diz a atriz, que enxerga no movimento gay um exemplo a ser seguido quanto à organização para reivindicar direitos.

Simone Spoladore, que interpreta a versão jovem de Ana, também compartilha da mesma dúvida sobre contra quem lutar. "Parece que o nosso inimigo era mais manifesto no passado mesmo. Mas hoje a gente tem um inimigo e nem sabe qual é ele direito", afirma a atriz.

A própria vida de Simone é um exemplo de aproximação tardia das questões que envolvem a ditadura militar no Brasil. Crescida em Curitiba, a atriz conta que seus pais não eram ligados a movimentos de resistência e que, apesar de ter nascido durante o regime militar, ela sentia que aquela época estava distante em sua mente.

"Pra mim, anos 60 era uma coisa distante", disse. "Foi quando eu fiz esse filme e 'O Ano Em Que Meus Pais Saíram de Férias' que eu entendi como essa história toda, na verdade, aconteceu há cinco minutos. Ainda reverbera em todos nós."