Documentário mostra ameaças de João Havelange e analisa biografias
A reflexão sobre o trabalho biográfico não autorizado e o resguardo da vida privada de personalidades públicas chegou, sem querer, nas telas de cinema. O documentário "Conversa com JH", do jornalista Ernesto Rodrigues, integra a programação da 37ª Mostra de São Paulo e debate não apenas a questão das biografias, como expõe a autoridade e a violência verbal proferidas pelo biografado durante a revisão do livro "Jogo Duro: A História de João Havelange", lançado por Ernesto em 2007 sobre o até então presidente de honra da Fifa.
"Foi o livro possível, mas não o livro que eu queria fazer. Poderia ser diferente se não houvesse essa pressão e esse trauma que o documentário mostra agora. Me senti um pouco como um jornalista que trabalha sob ameaça da censura", contou Ernesto ao UOL.
Diferente da biografia que o jornalista Paulo César de Araújo escreveu sobre Roberto Carlos, proibido pelo cantor após sua publicação em 2007, João Havelange, sempre contrário a imprensa, não só deixou o livro ir à prateleira, como também autorizou e colaborou com a pesquisa. No contrato, deixou explicita a condição de que ele pudesse ler o conteúdo antes da publicação. Em acordo apenas verbal, Ernesto aceitou, mas pediu: “que a última palavra seja minha”.
Comecei a acreditar que eu tinha uma espécie de retrato da vaidade humana, da megalomania que não está no livro. Ele é um patriarca, último dos patriarcas da política do 'amigo dos amigos'. Aquela coisa de 'aos amigos tudo, aos inimigos, a lei'
Os embates começaram exatamente após o envio dos originais ao dirigente, que classificou o material como "critico e malicioso". Temendo que o trabalho árduo de cerca de quatro anos, com mais de 200 entrevistados, fosse em vão, Ernesto propôs uma revisão das passagens polêmicas e, com um gravador de áudio, registrou todas as reuniões.
Nesses áudios, Havelange aparece extremamente irritado com trechos em que comenta a importância de Pelé ("O Pelé não é um gênio, era apenas um jogador de futebol", disse em certo momento), sobre as acusações – na época sem provas-- de que ele recebia subornos e comissões ("Isso eu não quero. Ou você tira isso ou você não publica esse livro") e sobre sua relação e discordância com outros dirigentes. "Já disse: Isso me incomoda. Você quer futrico. Vá à merda!", levanta a voz.
Com lastro em jornais, revistas e programas como “Globo Repórter”, Ernesto ficou intimidado, mas continuou o trabalho. Assim foi com Havelange, que mesmo contrariado, continuava a marcar reuniões para a releitura até a última página. “Não foram decisões fáceis, continuar ou parar o projeto. Mesmo com o livro lançado, isso não saia da minha cabeça. Sentia que precisava fazer alguma coisa com aquela angústia”, confidencia.
“Comecei a acreditar que eu tinha uma espécie de retrato da vaidade humana, da megalomania que não está no livro. Ele é um patriarca, último dos patriarcas da política do ‘amigo dos amigos’. Aquela coisa de ‘aos amigos tudo, aos inimigos, a lei’. Aquela coisa mafiosa, não no sentido criminoso, sanguinolento, mas na mentalidade”.
Trailer de "Conversa com JH"
Sessão de análise
Com a ajuda dos jornalistas (e amigos), Geneton Moraes Neto, George Moura e Ricardo Pereira, Ernesto monta uma espécie de terapia, que norteia o filme, entrecortada pelas negociações tensas e por depoimentos filmados para o livro. Como em um divã, não só Havelange, como seu próprio livro, o exercício do jornalismo e a relação entre biógrafo e biografado estão em jogo. Em dado momento, Ernesto abre concessões para tranquilizar seu personagem: “Alguns assuntos mais desconfortáveis, eu coloco na boca de seus amigos”,
Ouvindo as gravações, Ernesto reflete no documentário, que assina com a ajuda do filho, João: “Acho que o biografado é um pouco dono de sua história”. Ao UOL, ele mantém a discussão: “Quem escreve o que bem entende são os generais que assinaram o AI-5. Nós, jornalistas, não somos nada sem nossas entrevistas. Quem procura saber mesmo somos nós”, diz, fazendo graça com o nome da associação “Procure Saber”, que representa medalhões da música, como Chico Buarque, Caetano Veloso, Djavan, Gilberto Gil, na bravata a favor da autorização e, em alguns casos, também a participação nos lucros da biografia.
"Não existe celebridade de meio expediente"
Embora lamente o posicionamento dos artistas, Ernesto não os considera vilões. “Eu não quero elegê-los os inimigos dessa discussão. Eles têm um patrimônio tão grande, que isso tudo vira apenas um pequeno capítulo da biografia de cada um. Eu lamento muito que eles estejam desse lado. Eu fico com medo mesmo de quem está quieto, dos políticos e das pessoas poderosas do país, que estão gostando de ver esses artistas levando a discussão para a opinião pública”, explica.
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- http://entretenimento.uol.com.br/enquetes/2013/10/05/voce-acha-que-as-biografias-de-artistas-devem-passar-por-uma-autorizacao-previa.js
“Djavan diz que a gente ganha uma fortuna. Com esse pensamento mercantilista, dá pra imaginar: esse pessoal vai começar a cobrar para dar autógrafo, é isso? E se os inspiradores das canções começarem a achar que tem algum direito? E se o banco do vaticano começar a cobrar royalties pela música ‘Jesus Cristo’ do Roberto Carlos?”, rebate.
Para o jornalista, alguns contornos da vida privada tem seu valor para a história e para a curiosidade dos leitores. A vida amorosa do Chico Buarque, ele exemplifica, é mais importante do que as histórias sexuais de Havelange. “João Havelange tem uma importância fechada. O Chico Buarque tem o olhar da política, as canções sob o olhar feminino. Todo mundo sabe o nome da ex-mulher dele. Acho que 90% das mulheres brasileiras gostariam de ler sobre o casamento dele com a Marieta Severo. Como é esse cara que deixa mulheres apaixonadas? Com muito cuidado, não vejo como fazer uma biografia sem tocar nesse assunto”.
Assim serve quando o assunto é Roberto Carlos, um dos defensores mais ferrenhos da própria privacidade. “Mostrar a foto da perna dele já resolveria tudo. Faço minha uma frase do (jornalista Ricardo) Boechat: não existe celebridade de meio expediente. O Roberto não é o CPF dele, não é a perna dele, é o patrimônio do Brasil. Ele é dono da vida dele, mas não é dono da história”.
João Havelange brava, em uma das gravações, como se esperasse uma diferenciação entre o jornalista e o biógrafo: “Você não está escrevendo um livro, você está sendo jornalista”. Para Defendendo que o biógrafo precisa ser íntimo de seu personagem, Ernesto não vê separação.
“Quando você está questionando o direito de um biógrafo, você está questionando a liberdade de imprensa e ponto final. Meus dois livros são gigantescas reportagens. A matéria prima é a reportagem. Esses caras querem o quê? Controlar a imprensa de novo? Tem anistia para todo mundo e com o jornalismo não pode?”.
O resultado dessa discussão pode ser visto no cinema como o último capítulo da biografia complexa de um dos brasileiros que teve mais poder na história. Se o ex-presidente da Fifa, recluso desde que renunciou do cargo honorário e da presidência do COI, já tomou conhecimento do documentário, Ernesto não sabe responder. Mas mesmo com os traumas – evidenciado pelo suspiro profundo que ele dá na parte final do filme --, o jornalista admite: Havelange poderia ter impedido o livro, mas não o fez. “Talvez ele tenha percebido que era um livro que falava sobre coisas importantes, que geralmente a imprensa, hostil a ele, não diz. No final, ele cumpriu com a palavra”.
Serviço:
Conversa com JH
Na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
Exibição no dia 27/10, às 18h15
Na Matilha Cultural
Rua Rêgo Freitas, 542 - República São Paulo
Ingressos gratuitos (a ser retirado 1 hora antes da sessão)
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