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Há cem anos o cinema conhecia Carlitos, o herói do homem comum

Inácio Araujo

Especial para o UOL*

04/02/2014 11h53

Quando ninguém, ou quase ninguém, achava que o cinema era uma arte, só se admitia uma exceção: Charlie Chaplin, ou Carlitos, como se tornou conhecido. Desde 1914, quando estreou no cinema, descoberto por Mack Sennett, o rei da comédia do começo de Hollywood, notou-se que havia algo de muito particular nessa figura ágil e desafiadora.

Não demorou para que Carlitos aparecesse como um fenômeno --só a irrupção da Primeira Guerra Mundial retardou uma consagração mundial ainda mais completa-- e constituísse o tipo que o consagrou para sempre: o do vagabundo com ares nobres, caráter forte, contestador da ordem, inimigo do espúrio, amigo das garotas bonitas.

Sempre a dar um chute no traseiro do garçom metido a besta e a acolher um órfão, Carlitos impunha uma arte que chamava a atenção pelo humor (e nesse humor havia muito de desfaçatez) com que desmontava a ordenação da sociedade e combatia suas injustiças.

"O GAROTO" (1921)

Divulgação
Assim nasceu o mito Carlitos. Herói mitológico de uma era, do homem comum, acossado pelo patrão, pelo senhorio inflexível, pelos seus serviçais metidos. A esses ricos de verdade ou de fardamento Carlitos opunha os gestos nobres, uma nobreza de alma que se desdobrava num corpo proletário, rebelde, sublevado

Mas o fazia de maneira especial. Desde que foi contratado pela Keystone, Chaplin impôs não apenas o tipo, mas logo em seguida assumiu também o controle dos filmes, da direção ao roteiro. Assim seguiriam as coisas nas outras empresas por que passou: a Essenay, a Mutual e a First National, antes de criar, com Griffith, Douglas Fairbanks e Mary Pickford, a United Artists, a companhia dos próprios artistas que haviam construído a possibilidade de não mais se submeter aos estúdios.

Como Carlitos, Chaplin gostava de ser dono de seu nariz. E, se Chaplin tornou-se um milionário graças a sua arte, como Carlitos nasceu miserável e soube compreender os pobres e suas dificuldades melhor do que qualquer outro.

O fabuloso, no caso, é que podia mostrar não só sua solidariedade como o valor do homem oprimido com uma mímica única, em que as roupas serviam aos gestos, e os gestos à expressão facial. Um conjunto harmônico na desarmonia completa das situações em que se envolvia num mundo de força-bruta e das quais se saía com enérgica esperteza e inigualável imaginação.

Assim nasceu o mito Carlitos. Herói mitológico de uma era, como antes fora Ullisses (para usar a comparação de André Bazin). Herói do homem comum, acossado pelo patrão, pelo senhorio inflexível, pelos seus serviçais metidos: em suma, por essa burguesia que conseguia impor-se às máquinas (não esquecer que o começo do século 20 é a era das grandes migrações, do processo de crescimento das metrópoles, de um novo entendimento do homem com a máquina). A esses ricos de verdade ou de fardamento Carlitos opunha os gestos nobres, uma  nobreza de alma que se desdobrava num corpo proletário, rebelde, sublevado.

Ora, Carlitos podia ser tudo isso, mas, acima de tudo, e com tudo isso, fazia a plateia se menos na aparência, pois tinha como centro sua figura. Mas à elaboração cuidadosa das gags correspondia uma filmagem trabalhosa. Para fazer os dois insuperáveis rolos de “O Imigrante”, por exemplo, uma de suas obras-primas,Chaplin precisou filmar 90 rolos. Em linhas gerais, para fazer 17 minutos filmou mais ou menos 15 horas...

100 ANOS DE "CARLITOS REPÓRTER"

  • Reprodução

    Há exatamente um século a Keystone Pictures anunciava com pompa a estreia de "Making a Living". Conhecido no Brasil como "Carlitos Repórter", o curta marca a estreia de Charles Chaplin, o então "famoso pantomímico inglês", como ator de cinema. Em homenagem à data, o UOL disponbiliza o curta --já em domínio público--, acompanhado de uma resenha assinada pelo crítico Chico Firemann.

Sim, um gênio se faz com trabalho, com caráter. Tanto caráter que, quando chegou o cinema sonoro, Chaplin nunca aceitou que seu Carlitos falasse. "Luzes da Cidade", de 1936, a última aparição do herói, tinha música e ruídos, mas não diálogos.

Esses surgirão em “O Grande Ditador”, é verdade, embora o discurso antológico em que  o ditador Hynkel ameaça o mundo seja um monte de ruídos incompreensíveis. Essa era a resposta do comediante judeu ao nazista, que ficou furibundo com o filme. Mas Chaplin sabia que Hitler é que imitava o seu bigodinho, e não o inverso. E sabia reduzir Hynkel/Hitler à insignificância, fazendo do humor uma gostosa arma de guerra.

É verdade que a guerra terá deixado uma marca cruel no cineasta. E “Monsieur Verdoux”, gentil assassino de mulheres, não dará muitos motivos para rir.

E depois da guerra veio a Guerra Fria, a perseguição por sonegação de impostos (na verdade, perseguição ao britânico que não se dobrava às conveniências políticas do momento), o exílio: aquilo que melhor do que ninguém exprime Calvero, o triste palhaço de “Luzes da Ribalta”. É quando vai a Londres para apresentar seu filme que Chaplin decide renunciar à América, da qual se vingará em 1957 ao filmar “Um Rei em Nova York”.

Depois disso, Charles Chaplin só voltaria a filmar em 1965 sua “Condessa de Hong Kong”. O filme fracassa, apesar do elenco com Sophia Loren e Marlon Brando, apesar de ser defendido pelos chaplinianos radicais: ninguém vê mais a graça do palhaço, nem o gênio do diretor. Parece que o tempo de Chaplin, nascido em 1889, havia passado. Ele morreria em 1977.
 

* Inácio Araujo é crítico de cinema da "Folha de S. Paulo" e coordenador do curso "Cinema: História e Linguagem".