Fazendo filmes-poesia sobre a memória, Resnais fundou o cinema moderno
1959 foi um ano decisivo para o cinema moderno. Naquele ano, Jean-Luc Godard lançava seu primeiro filme, “Acossado”, François Truffaut estreava com “Os Incompreendidos” e, nos Estados Unidos, Alfred Hitchcock preparava “Psicose”. Mas olhando hoje em retrospecto, talvez o filme mais influente daquele ano, o que deixou mais marcas para a posteridade tenha sido “Hiroshima Meu Amor”, do francês Alain Resnais.
Cartaz do filme "Hiroshima, Meu Amor", pelo qual foi indicado a 11 prêmios e ganhou cinco
Em 2012, em entrevista coletiva no Festival de Cannes, perguntei a Resnais o que ele pensava da morte. “Essa é a grande questão. Desde que nascemos, estamos condenados, sabendo que a morte nos espera em algum momento. Eu gostaria de ter a inteligência de um professor da Sorbonne para responder a isso, mas só posso devolver a questão”, respondeu, com os óculos escuros que não tirava nos últimos anos. A obra que ele deixou talvez seja a maior resposta.
Nenhum outro cineasta na história foi tão a fundo na construção do cinema como um fluxo da memória, tanto pessoal (os amores, os desejos) quanto política (os traumas coletivos da Segunda Guerra, a bomba de Hiroshima). Isso já em seus curtas de início de carreira, em especial “Noite e Neblina”, em que visita os campos de concentração de Auschwitz questionando-se se é possível representar na tela o extermínio de judeus, que não deixou testemunhas. (Spielberg, sem escrúpulos éticos, não pensaria duas vezes em pregar susto no espectador com a cena das mulheres na falsa câmara de gás em “A Lista de Schindler”.)
“Hiroshima Meu Amor”, com roteiro da escritora Marguerite Duras, funde memória pessoal e coletiva com a história de um casal, uma atriz francesa e um amante japonês – ela marcada pela Ocupação em Paris, ele marcado pela bomba. Ali, o cinema atingiu um grau de liberdade e poesia que poucas vezes se atingiu, a memória dos personagens ditando o fluxo livre das imagens.
Outros grandes marcos dessa obra fundamental foram “O Ano Passado em Marienbad” (1961), filme-enigma em que tanto o tempo quanto o espaço da mansão formam um fascinante labirinto, Leão de Ouro em Veneza; o pouco visto “Eu Te Amo, Eu Te Amo” (1968), em que um homem entra numa máquina futurista que embaralha suas memórias; e “Meu Tio da América” (1980), uma ficção toda construída a partir das teorias comportamentais do neurobiologista Henri Laborit.
Nas últimas décadas, Resnais ainda filmava como um garoto, com um humor ainda jovem, rindo de si mesmo, dos seus atores e dos seus personagens. As pessoas que cantam de repente em “Amores Parisienses” (1997); o sucesso de “Medos Privados em Lugares Públicos” (2006), que ficou mais de um ano em cartaz em São Paulo; e a ironia quase mágica de “Ervas Daninhas” não deixam mentir.
Há menos de um mês, ele foi premiado em Berlim com seu último filme, “Aimer, Boire et Chanter” (Amar, Beber e Cantar) – debilitado, já não foi ao festival apresentá-lo.
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