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Diretor torna "Noé" universal ao misturar Bíblia com Darwin e Big Bang

James Cimino

Do UOL, de São Paulo

02/04/2014 20h03

Em uma época de acirramentos ideológicos bastante potencializados pela internet e pelas redes sociais, diariamente veem-se postagens de criacionistas defendendo interpretações literais da Bíblia e a implantação de leis regendo o comportamento dos indivíduos com base em seu conteúdo.

No lado oposto, estão os evolucionistas negando veementemente os ensinamentos do livro sagrado e suas explicações para o surgimento da Terra, do homem, para a história das civilizações e para os grandes mistérios da vida e do universo.

Neste contexto, surge o diretor Darren Aronofsky (de “Cisne Negro” e “Réquiem para um Sonho”) com uma interpretação apaziguadora sobre o Gênesis, escritura sagrada com passagens comuns ao judaísmo, cristianismo e islamismo, que conta a história da origem do homem e do universo.

Em “Noé”, que chega aos cinemas brasileiros nesta quinta (3), o diretor mistura as interpretações científicas e religiosas para a criação, misturando os versículos bíblicos com imagens que representam o Big Bang (“E disse Deus: Haja luz; e houve luz”) e a teoria evolucionista de Charles Darwin (“E disse Deus: Produzam as águas abundantemente répteis de alma vivente; e voem as aves sobre a face da expansão dos céus”).

A sequência de imagens aparece quando Noé, interpretado por Russell Crowe, conta aos filhos a história que ouvia de seu pai, que ouvira de seu avô, que ouvira de seu bisavô e assim sucessivamente até chegar ao primeiro homem: Adão.

Durante a narrativa, Noé chega a citar indiretamente os dinossauros, quando fala que Deus criou todos os animais, inclusive aqueles gigantescos que não existem mais.

Ainda na versão cinematográfica, ao retratar a corrupção humana que levou Deus a decidir aniquilar os homens da Terra, outra sequência exibe os descendentes de Caim, o primeiro assassino, povoando os continentes, que ainda não eram separados.

Conflitos de Noé

Longe de ser uma aula sobre religião e ciência, o filme tem como foco principal a história do profeta Noé, que fora encarregado por Deus de construir uma arca que manteria a salvo ele, sua mulher, seus três filhos e um par de animais de todas as espécies durante o dilúvio, uma tempestade avassaladora que inundaria o planeta e limparia a espécie humana de toda sua maldade.

E apesar de o trailer do filme dar a ideia de que Aronofsky teria usado Crowe para dar ares de filme de ação à história, o que mais se destaca durante a narrativa são os conflitos éticos e morais deste homem incumbido de uma das mais árduas tarefas.

Quadro "Redenção de Cã", de Modesto Brocos - Reprodução - Reprodução
Pintura de Modesto Brocos, "A Redenção de Cã" mostra mulher negra agradecendo a Deus por que a filha mulata tivera um filho branco; obra faz ironia da passagem bíblica que narra a maldição do filho de Noé
Imagem: Reprodução
Ao início da tempestade, quando ainda é possível se ouvir através das paredes da arca os sons dos agonizantes deixados de fora, sua família insiste que eles devem ajudar, pois também há muitos inocentes dentre os que se afogam.

Mas Noé segue irredutível em sua decisão de cumprir as ordens de Deus. Essa obstinação também o levará à ruína.

Outra passagem do Gênesis que sucede o dilúvio, a famosa maldição de Cã, o filho do meio de Noé, foi modificada. Utilizada durante séculos para justificar a escravidão dos negros, a passagem bíblica conta que Cã teria rido da nudez de seu pai, embriagado pelo vinho. Noé, ao saber do ocorrido, amaldiçoou os descendentes de Cã, condenando-os a serem servos dos descendentes de Sem e Jafé, seus outros filhos.

No longa, a passagem em que Cã vê a nudez do Noé coloca o pai e o filho em um dos mais profundos e tocantes dilemas familiares de todo o filme, que leva o espectador a se compadecer de ambos.

Por todas essas razões, o Noé de Aronofsky não apenas concilia visões de mundo como dá à história uma dimensão mais universal, capaz de atrair públicos de todas as idades e formações filosóficas, pois se apresenta mais como a interpretação de um mito e menos como dogma.