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Últimos filmes de Coutinho narram tragédia entrelaçada à história do Brasil

Cena do média-metragem "A Família de Elizabeth Teixeira", de Eduardo Coutinho - Divulgação
Cena do média-metragem "A Família de Elizabeth Teixeira", de Eduardo Coutinho Imagem: Divulgação

Carlos Minuano

Do UOL, em São Paulo

07/04/2014 07h00

Há exatos 50 anos, a produção do clássico “Cabra Marcado para Morrer”, de Eduardo Coutinho, foi interrompida pelo golpe militar de 1964, que instaurou no país uma ditadura militar por duas décadas. Em dois documentários, “A Família de Elizabeth Teixeira” e “Sobreviventes de Galileia” (ambos de 2013), o cineasta revisita o local e personagens do filme concluído por ele na década de 1980, após a abertura política. As produções ganham duas exibições no festival É Tudo Verdade, em São Paulo (nesta segunda, 7), e no Rio (no dia 12).

Os dois documentários, os últimos filmados por Eduardo Coutinho (morto em fevereiro), mostram o reencontro dele com os principais personagens de “Cabra”, 30 anos depois. Em especial, com a estrela do filme, Elizabeth, a viúva do líder camponês João Pedro Teixeira, assassinado por policiais militares, por ordem de um fazendeiro da Paraíba. O cineasta também reencontra a família Teixeira, dilacerada pela perseguição política, e os camponeses do engenho Galileia, em Pernambuco, onde “Cabra” foi filmado.

Coutinho promove em seus dois últimos filmes um passeio pelo que ficou entre o antes e o depois de uma tragédia que se entrelaça com a história política do Brasil. É também uma tentativa de entender o que aconteceu, e o que ficou. Ou algo como retomar uma conversa deixada pela metade num passado de memórias difusas. Em "Sobreviventes", Coutinho, depois de um abraço e um sorriso em silêncio, escuta do agricultor Cícero, um dos personagens de “Cabra”: “Você está acabadinho, velho que nem eu”.

Mas a alegria do reencontro, ou a quantidade de anos passados, não amenizam a dureza da realidade vivida pelos personagens. “Esses documentários mostram o peso da repressão na época, que faz seus ecos até hoje”, diz Jordana Berg, montadora dos dois documentários, o média-metragem “Família” e o curta “Sobreviventes”. Para ela, os filmes acrescentam ao “Cabra” o que toda volta a uma história traz, ou seja, o preço que se pagou por tudo. Foi ela quem se debruçou sobre o material, ao lado de Coutinho, durante cinco semanas, de maio a junho de 2013, mesmo ano em que foram realizadas as entrevistas.

“A Família de Elizabeth Teixeira” e “O Sobreviventes de Galileia” integram o DVD especial de 50 anos de “Cabra Marcado para Morrer”, lançado no dia 29 de março.

Cena do curta-metragem "Sobreviventes de Galileia", de Eduardo Coutinho - Divulgação - Divulgação
Cena do curta-metragem "Sobreviventes de Galileia", de Eduardo Coutinho
Imagem: Divulgação

O cinema novo de Eduardo Coutinho
Mesmo separado de “Cabra”, os dois documentários possuem força e vida própria, defende Jordana Berg. “Principalmente o filme sobre a família Teixeira, permite conhecer, ou ao menos vislumbrar, as relações familiares, as dores e mágoas que foram criadas ao longo do tempo, onde nem tudo é compreensível ou justificável pelos acontecimentos”, diz.

Admiradora de Coutinho, Berg destaca o que considera uma das principais lições do cineasta: saber ouvir o entrevistado. “É um aprendizado da escuta ao mesmo tempo rigorosa e afetuosa, sem julgamento, onde as pessoas podem ser boas e más ao mesmo tempo”.

Cena de "Cabra Marcado para Morrer" - Divulgação - Divulgação
Cena de "Cabra Marcado para Morrer" (1984), de Eduardo Coutinho
Imagem: Divulgação

No filme “A Família”, um momento alto é quando o cineasta pede que Elizabeth releia sua fala, meio solta, gravada na despedida do reencontro na década de 1980, para a retomada de "Cabra". Ela atende ao pedido e lê com dificuldade suas próprias palavras, proferidas décadas atrás: “É preciso mudar o regime. Democracia sem liberdade? Com salário de miséria e de fome? Democracia com o filho do operário sem poder estudar?”, questionou à época.

O trecho mais dramático, entretanto, é a declaração de uma das filhas de Elizabeth: “Eu sou morta desde os oito anos”, diz Marta, separada da mãe, após a morte do pai, e expulsa pouco depois da casa do avô.

“Nada define melhor (o filme) ‘A Família de Elizabeth Teixeira’. Uma das pessoas que nos conta a história diz estar morta desde os oito anos de idade”, escreve José Carlos Avellar, curador de cinema do Instituto Moreira Salles, no livro que acompanha o DVD. “A família dilacerada em 1964 não conseguiu se recompor depois do reencontro, até certo ponto mediado pelo filme”, lamenta Avellar no texto.

Filme marcado para viver
É impossível falar das obras póstumas de Coutinho sem destacar “Cabra”. Considerado uma obra prima de não-ficção, o filme surgiu meio por acaso. Depois de filmar em 1962 um protesto pela morte do líder camponês, Coutinho decide fazer uma ficção sobre a luta no campo. Ele chama os próprios camponeses para serem atores na encenação de seu drama. A empreitada, após 35 dias de trabalho, foi abortada pelo anúncio do golpe em 1º de abril de 1964.

A equipe fugiu para o mato, deixando pra trás equipamentos e materiais que foram confiscados pelo exercito e divulgado depois como “subversivo”.  Mas os negativos filmados já tinham sido enviados para um laboratório no Rio e o cineasta retoma a produção, duas décadas depois, no formato de documentário, lançado em 1984.

“Todo o trabalho da montagem consistiu no esforço para tornar compreensível a saga da família Teixeira, dos camponeses de Galileia e da própria realização do filme”, conta o diretor Eduardo Escorel, montador de “Cabra”. Tarefa complexa, considerando os três tempos em que os fatos ocorrem e a quantidade de personagens envolvidos. “O filme ‘Cabra’ é um documentário panorâmico sobre uma época. A obra posterior do Coutinho é sobre pessoas comuns e o que elas têm a dizer”, define Escorel.

Para ele, "Cabra" vai além do resgate da tragédia da família Teixeira e o drama dos camponeses de Galiléia ainda durante a ditadura. “Documenta também a própria evolução da linguagem do cinema brasileiro entre 1962 e o início da década de 1980”, afirma.

São razões que, segundo ele, explicam a permanência do filme, marcado para viver, mesmo décadas depois de sua realização. Umas das inovações promovidas por Coutinho é a participação do cineasta em cena, diz Escorel. “Era uma forma de aproximação com os personagens, que na época era novidade”.

Homenagem a Coutinho
Dedicado a disseminar documentários latino-americanos, o festival É Tudo Verdade tem em Eduardo Coutinho uma de suas principais inspirações, afirma o criador e curador do evento, o jornalista Amir Labaki. “A criação e a história do festival devem muitíssimo a ele, que foi o maior artista brasileiro a optar pelo documentário”, afirma.

A exibição dos últimos dois trabalhos de Eduardo Coutinho, “A Família de Elizabeth” e “Sobreviventes de Galileia”, segundo o jornalista, “é uma modestíssima homenagem dedicada agora a ele, ainda sob o impacto devastador de seu trágico desaparecimento”. Coutinho foi assassinado pelo filho (que sofre de transtornos mentais) em seu apartamento, em fevereiro deste ano.

Labaki também destaca a relevância de “Cabra”, segundo ele, a mais importante narrativa audiovisual do impacto devastador da ditadura militar instaurada em 1964 sobre o destino direto da sociedade brasileira, representada pela família Teixeira. “É uma obra formalmente inovadora, um filme a partir de um filme interrompido devido à repressão, um ensaio sobre as dificuldades de se fazer cinema”.

O festival É Tudo Verdade vai até 13 de abril em São Paulo e no Rio. Depois segue para Campinas, Brasília e Belo Horizonte.

Serviço:

É Tudo Verdade: “A Família De Elizabeth Teixeira” e “Sobreviventes de Galileia”
Em São Paulo: segunda (7), às 19h; Cine Livraria Cultura (300 lugares), Conjunto Nacional – av. Paulista, 2073, Bela Vista, tel. 0/xx/11/3285-3696
No Rio: sábado (12), às 16h; Instituto Moreira Salles – r. Marquês de São Vicente, 476, Gávea, tel. 0/xx/21/3284-7400
Duração: 91 minutos
Quanto: grátis
Classificação: 12 anos

DVD “Cabra Marcado para Morrer” (IMS/Videofilmes)
Direção:
Eduardo Coutinho
Quanto: R$ 44, 90