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Após Monty Phyton, carreira de Terry Gilliam teve fracassos e obras geniais

Terry Gilliam (dir.), ex-integrante da trupe de comediantes da série "Monty Python", dá instruções a atores no filme "O Teorema Zero" - Divulgação
Terry Gilliam (dir.), ex-integrante da trupe de comediantes da série "Monty Python", dá instruções a atores no filme "O Teorema Zero" Imagem: Divulgação

Roberto Sadovski

Do UOL, em São Paulo

12/07/2014 06h00

Uma dúzia de filmes. É o que bastou para que o diretor americano Terry Gilliam deixasse a sombra do grupo inglês Monty Python para trás e marcasse seu lugar a ferro e a fogo entre os grandes gênios do cinema mundial. Uma dúzia de filmes...

A verdade é que Gilliam, que obteve cidadania inglesa em 1968 e renunciou ao passaporte americano em 2006, é definido de diversas formas: pelos filmes que fez; pelos filmes que abandonou ou pelos quais foi abandonado; e por aquele que, há anos, desaparece entre seus dedos para, depois, tomar novo fôlego.

Em cartaz com "O Teorema Zero", e nos palcos ingleses celebrando a volta do Monty Python, ele é um artista em constante evolução – não que as circunstâncias permitissem outro rumo.

Início

Nascido em 1940 na cidade de Minneapolis, em Minnesota, Terence Vance Gilliam era aluno exemplar, politicamente ativo e consumidor voraz de animação e revistas de humor. Foi produzindo tiras de quadrinhos inspiradas pela seminal "Mad" que ele terminou trabalhando para a anárquica "Help!".

Com o fim da publicação, ele trocou os Estados Unidos pela Inglaterra e, ao trabalhar na série infantil "Do Not Adjustt Your Set", conheceu Eric Idle, Terry Jones e Michael Palin. Somando John Cleese, que ele havia fotografado anos antes para a "Help!", a semente do Python estava plantada.

E floresceu! "Monty Python’s Flying Circus" decolou e Gilliam, inicialmente um animador, logo estava integrado à trupe principal. Com a TV abrindo espaço para o cinema, foi natural sua transicão para trás das câmeras. Em 1975 ele co-dirigiu "Monty Python e o Cálice Sagrado" com Terry Jones, e o resultado foi um dos filmes mais engraçados da história, fonte de citações inesgotável e um clássico nonsense irretocável.

Com a lenta desintegração do grupo entre "A Vida de Brian" (1979) e "O Sentido da Vida" (1983, no qual ele é o responsável pelas sequências animadas), Gilliam investiu pesado na carreira de diretor.

E um gênio foi sendo revelado: um gênio torto, maldito e sensacional.

Pós-Monty Phyton

A fantasia medieval "Jabberwocky" (1977), sobre um marceneiro que precisa enfrentar um dragão, ainda tem o tom do Monty Python, mas ajudou a estabelecer a estética sombria e bem humorada que permearia seu trabalho como diretor.

O grande salto veio em 1981 com "Bandidos do Tempo". O orçamento enxuto de 5 milhões de dólares, com cada centavo materializando as ideias insanas de Gilliam (que co-escreveu o longa com o chapa Michael Palin) foi traduzido em 43 milhões só nas bilheterias ianques. De alguma forma, o gosto adquirido do humor dos Python atravessou barreiras e atingiu o público médio. E não foi nada mal o ator escolhido para papel do aventureiro descrito no roteiro como “um sujeito que é a cara de Sean Connery” ser... Sean Connery!

Terry Gilliam estava no topo do mundo! Mas sabemos o que acontece quando a altura é grande...

Brazil, o Filme - Divulgação - Divulgação
Pôster de "Brazil, o Filme"
Imagem: Divulgação

Brazil

"Brazil, o Filme", lançado em 1985, encapsula todas as ideias de Gilliam sobre o futuro distópico, o totalitarismo político, a mão pesada do Estado roubando dos cidadãos seu livre arbítrio. Era o estudante revolucionário, agora artista celebrado, colocando seus medos, convicções e fantasias para o mundo ver.

Só esqueceram de avisar aos produtores do filme. A versão brilhante de Gilliam chegou ao mercado internacional intocada. Para o lançamento nos Estados Unidos, porém, o estúdio determinou que o final era deprimente demais para o público médio (o mesmo que, quatro anos antes, abraçara "Bandidos do Tempo").

Sid Sheinberg, chefão da Universal, retalhou "Brazil", eliminou o destino do protagonista, Sam Lowry (Jonathan Pryce) como a um câncer e transformou a ficção científica distópica num filme “seguro”. Gilliam não se deu por vencido e, numa batalha travada publicamente, entrou em acordo com Sheinberg e uma versão modificada, ainda que com a aprovação do diretor, foi liberada para o consumo ianque.

No lançamento em DVD pela prestigiosa Criterion Collection em 1999 (relançado em 2006), "Brazil" é apresentado na visão completa de Gilliam, com 142 minutos, e também o corte de Sheinberg, batizado “O Amor a Tudo Conquista”. Fofo.

"Brazil" mostrou toda a força de Terry Gilliam, um colosso de imenso apuro estético e total domínio narrativo, mas se tornou estafante nos bastidores. Sofrendo de exaustão aguda, o diretor chegou a perder o uso das pernas e ficou no estaleiro por duas semanas.

Mesmo que o resultado seja uma obra prima, "Brazil" lhe deu um vislumbre do que era trabalhar com os grandes estúdios de cinema. E os problemas de bastidores quase mataram "As Aventuras do Barão Münchausen", que ele lançou em 1988. Ou melhor, “lançou” no sentido quase figurativo.

Münchausen - Divulgação - Divulgação
John Neville em cena do filme "As Aventuras do Barão de Münchausen" (1988)
Imagem: Divulgação

Münchausen

Mais ambicioso (e caro) que "Brazil", "Münchausen" é um delírio que mistura deuses, monstros, prodígios e guerreiros num conto que pode ter um ou outro exagero pelo maior mentiroso da história, o Barão do título (papel de John Neville).

As filmagens foram uma operação de guerra, com atores descrevendo o set como o vislumbre na mente de um louco. O orçamento, na casa dos 20 milhões de dólares, dobrou durante as filmagens. E estava destinado a nunca ser recuperado, já que "As Aventuras do Barão Münchausen" foi praticamente ignorado pelo estúdio, que o despejou em nada além de uma centena de salas (filmes “de arte” na época ganhavam ao menos 400 salas em seu lançamento) de forma protocolar.

Não que alguém tivesse problemas com o filme – outra obra-prima. Mas a Columbia acabara de ser comprada pelo gigante nipônico Sony, e a ordem do dia com a nova gerência era se livrar dos produtos aprovados pela gestão anterior. Simples assim. Era questão de ajuste de livros fiscais, o que prejudicou uma dezena de filmes... Mas nenhum com tanta visibilidade quanto "As Aventuras do Barão Münchausen". O mais impressionante é que, apesar das experiências caóticas alinhadas, Gilliam entregou-se totalmente não só aos estúdios, mas promoveu, em seguida, uma verdadeira volta ao lar.

12 Macacos - Reprodução - Reprodução
Bruce Willis e Brad Pitt em cena de "12 Macacos"
Imagem: Reprodução

De volta aos EUA

Redescobrir suas raízes americanas foi o tom de "O Pescador de Ilusões" (1991), "12 Macacos" (1995) e "Medo e Delírio" (1998). Fantasia, ficção científica e delírio psicodélico estavam na ordem do dia, e mesmo sem usar plots fantásticos como seus trabalhos anteriores, os filmes estavam longe de ser trabalhos domados para o povão.

Gilliam ainda fazia os olhos dos grandes astros nos Estados Unidos brilhar, já que no elenco enfileiravam-se atores no topo da cadeia alimentar da época, como Robin Williams, Jeff Bridges, Bruce Willis, Brad Pitt, Johnny Depp e Benicio del Toro. São filmes essenciais que resistem bravamente ao tempo – em especial "12 Macacos", uma aventura que mistura paranoia ambientalista, viagem no tempo e um futuro distópico, tudo na mesma refeição.

Projetos engavetados

A essa altura, porém, Terry Gilliam já deixava um rastro de projetos inacabados, filmes pelo meio do caminho, trabalhos aos quais ele dedicou tempo e massa cinzenta e que terminaram vitimados pela navalha hollywoodiana. Um roteiro de "Bandidos do Tempo 2" não saiu da gaveta.

Sua versão para "Um Conto de Duas Cidades", de Charles Dickens, também teve o desenvolvimento emperrado por desavenças com os produtores sobre orçamento e o protagonista.

Duas vezes o diretor tentou transformar "Watchmen", obra seminal de Alan Moore e Dave Gibbons, em filme – em 1989, no rastro de "Batman", de Tim Burton, e mais uma vez em 1996. Gilliam jogou a toalha ao perceber que a série em doze partes só poderia ser traduzida em live action a contento... em forma de série, na TV, em doze partes. Zack Snyder terminou fazendo sua adaptação em 2008 – se Gilliam estava certo ou errado é uma discussão para outro momento...

Perdido em La Mancha - Divulgação - Divulgação
Terry Gilliam (esq.) e Jean Rochefort em cena do documentário "Perdido em La Mancha" (2002)
Imagem: Divulgação

Quixote

Seu Santo Graal seria desenhado em 1999. Gilliam tomou para si o fardo de adaptar a obra de Miguel de Cervantes como "O Homem que Matou Dom Quixote". A pré-produção, iniciada em 1998, começou a dar corpo a um filme que tomava liberdades sobre a obra original, como fazer do protagonista não Quixote, e sim um publicitário arremessado ao passado.

Jean Rochefort estava pronto para ser o cavaleiro insano, com Johnny Depp no papel do viajante do tempo. As filmagens começaram, ao custo de 32 milhões de dólares... E começou o martírio. Logo no primeiro dia, a equipe descobriu que a locação, um deserto na Espanha, era também lugar de teste para jatos das Nações Unidas – o barulho era constante e ensurdecedor. No segundo dia, uma enchente destruiu equipamentos e cenários. Nos dias seguintes, Jean Rochefort teve uma hérnia de disco e precisou ser operado com urgência, deixando claro que Dom Quixote não poderia mais montar seu cavalo...

Gilliam pediu água e o filme foi interrompido, coletando o seguro de 15 milhões, metade do investimento. A equipe do making of terminou transformando seu material no documentário brutal "Perdido em La Mancha", que retrata a degradação do projeto e o desespero de um artista que vê sua obra ir para o buraco.

Terry Gilliam ainda tentou trabalhar depois, mas seus dois filmes lançados em 2005, "Os Irmãos Grimm" e "Tideland", mostraram que a faísca criativa não havia se extinguido, mas estava em franca hibernação. A volta ao trabalho em um filme que espelhava sua fúria criativa do começo de carreira se deu anos depois, mas nada poderia preparar para o impacto de "O Mundo Imaginário do Dr. Parnassus".

Parnassus

A aventura fantástica acompanha o Parnassus do título (Christopher Plummer), que lidera uma trupe de teatro itinerante pela Europa. A rotina do grupo é alterada quando um estranho se junta a eles e, logo, descobre a terra feita de pura imaginação criada por Parnassus. O ator escolhido foi Heath Ledger. Que morreu no meio das filmagens. Mais uma vez, Terry Gilliam tinha de lidar com circunstâncias extremas – só que, agora, ele também teria de descobrir como fazer a roda continuar girando depois da morte de alguém que havia se tornado um amigo querido.

Legder havia rodado todas as cenas de seu personagem no “mundo real”, e ainda não entrara no universo lúdico criado na mente de Parnassus – um monge de supostos mil anos de idade que tentava barganhar sua vida com o diabo. Foi quando os amigos vieram ao resgate, e as três sequencias do estranho ao sair da realidade tiveram o personagem interpretado por Jude Law, Colin Farrell e Johnny Depp. No mundo dos sonhos, tudo é possível – até construir o legado para um ator que se foi jovem demais.

"O Teorema Zero"

"O Mundo Imaginário do Dr. Parnassus", lançado finalmente em 2009, fez Terry Gilliam repensar suas prioridades, e ele tirou o pé do acelerador sem traumas. Rodou dois curtas nos anos seguintes e retomou "O Teorema Zero" em 2012.

Com Christoph Waltz no papel de um programador de computador em busca do sentido da vida – um paralelo fácil do momento do cineasta –, a ficção científica foi rodada em pouco mais de um mês, com orçamento enxuto e basicamente um ano do ponto de partida até o filme estar na lata. Tematicamente e visualmente, é Gilliam clássico.

O que não significa que o diretor fez as pazes com seus demônios. "O Homem Que Matou Dom Quixote" fora retomado em 2008, com Michael Palim e, depois, Robert Duvall, anunciado no papel que fora de Jean Rochefort, e Ewan McGregor tomando o lugar de Johnny Depp.

“Vou morrer se não tirar esse filme de mim”, disse o diretor à época. O projeto não ganhou tração. Parecia um sonho que só estaria completo na mente de Terry Gilliam... Até que, em janeiro deste ano, ele usou sua conta no Facebook para transmitir um recado: “Os sonhos de Dom Quixote recomeçaram. (O desenhista conceitual) Dave Warren está rabiscando. Será que este ano colocaremos o velho bastardo de volta em seu cavalo? Sacrifícios humanos são bem vindos. Fiquem ligados!”. As câmeras começam a rodar em setembro. É a linha tênue que separa loucos de gênios. Melhor apostar na segunda opção.

Trailer legandado de "O Teorema Zero"