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"O Doador de Memórias" não enfia ideologias goela abaixo, diz Jeff Bridges

Eduardo Graça

Do UOL, em Nova York

10/09/2014 14h17

"O Doador de Memórias" foi um fracasso de crítica e público nos Estados Unidos. Recebeu 30% de aprovação no site especializado Rotten Tomatoes, uma espécie de termômetro da audiência, e arrecadou pouco mais de US$ 37 milhões nas bilheterias em quatro semanas de exibição nas salas americanas. No mesmo período, "Divergente" já havia faturado quase US$ 125 milhões. O longa passou longe dos sucessos de produções adaptadas de livros voltados ao público "jovem adulto", como "Jogos Vorazes" e o próprio "Divergente". Agora, no Brasil, ganha uma sobrevida a partir desta quinta-feira (11) para tentar melhorar os baixos números.

O filme é dirigido pelo australiano Phillip Noyce e com produção do ator Jeff Bridges, baseado nas ideias centrais do best-seller de mesmo nome escritor por Lois Lowry e publicado em 1992. Lowry é uma espécie de pioneira entre os livros voltados para um público mais jovem, centrados em um universo distópico com tons pós-apocalípticos, e a história é fruto da experiência da autora, que cresceu em vilas militares americanas nos quatro cantos do planeta.

"Um filme não é um livro, mas tentei manter o espírito da obra de Lowry. A questão central foi a de que boa parte do livro é internalizado, são os pensamentos do personagem Jonas. Como os colocar no filme? E quando Jonas consegue ultrapassar os limites da comunidade, o livro segue com ele. No filme, você vê como sua fuga afetou todos os que o cercam", contou o roteirista Robert B. Weide, que está no projeto desde o início, durante um encontro com jornalistas em Nova York, do qual o UOL participou.

Futuro sem dor e sem emoções

A solidão intramuros e a noção da disciplina e da uniformidade --no vestuário, na arquitetura, nos direitos e nos deveres da comunidade-- são os ingredientes para a criação de um universo pós-apocalíptico em que não há dor, fome ou guerras, mas onde se vive, também, a escassez de emoções e de humanidade.

Livro e filme partem do ponto de vista de Jonas (vivido por Brenton Thwaites), criado por pais robóticos (interpretados por Alexander Skarsgard e Katie Holmes) e eleito para ser o novo receptáculo de todas as memórias da humanidade. Posto este que era anteriormente ocupado pelo personagem vivido por Bridges, cuja função, a partir de então, dá título ao filme.

Para Katie Holmes, foi um exercício especialmente interessante interpretar pessoas cujas emoções precisam ser necessariamente contidas. "Phillip nos lembrava de que não deveríamos nos tocar, uns aos outros. É difícil, é o que você faz normalmente como mãe, como ser humano. Foi muito interessante encarnar alguém que não tem emoção alguma", disse ela durante o encontro. 

Da parte mais jovem do elenco, apenas a cantora Taylor Swift, em um papel tão pequeno quanto crucial para a trama, leu o livro de Lowry na escola. "Foi um desses livros que mudam sua visão de mundo, sabe?", disse. "Recebo mensagens de fãs o tempo todo me relatando como sentem a dor do mundo contemporâneo, as perdas intensas que sofrem, suas inseguranças. O que eu queria dizer a eles é que felicidade não é uma constante. Não é para ser. Felicidade são momentos que experimentamos na vida, que sempre vale a pena. É o que eu espero que levem com eles deste filme".

Para Bridges, as mensagens que a história passa para o público são sutis. "O que mais gosto do filme é que, exatamente como o livro, ele não está enfiando nenhuma ideologia goela abaixo das pessoas. Mas, quem sabe, ele as faça pensar".

Trailer legendado de "O Doador de Memórias"

Pioneiro dos livros para "jovem adulto"

Jeff Bridges, protagonista e produtor do longa, iniciou o processo de adaptação cinematográfica de "O Doador de Memórias" muito antes da consolidação do gênero "jovem adulto", mina de ouro dos estúdios, atrás apenas dos filmes de super-heróis na máquina de produção atual de Hollywood. Bridges buscava um projeto para realizar o sonho antigo: dirigir seu pai, Lloyd Bridges, que morreu em 1998, em um filme que suas três filhas pudessem assistir. Na época, a mais velha, Isabelle, tinha 15 anos, e a mais nova, Hayley, 11.

Capa do livro "The Giver", de Lois Lowry, que deu origem ao filme "O Doador de Memórias" - Reprodução - Reprodução
Capa da edição americana do livro "The Giver", de Lois Lowry, com a imagem descrita por Bridges
Imagem: Reprodução

"Vasculhei livros infantis e, em uma capa, vi essa figura com barba branca e pensei: 'Meu pai poderia fazer este personagem'. Li, adorei e as minhas meninas me disseram que estavam carecas de conhecer o livro, favorito dos que haviam lido na escola. Depois descobri que havia uma polêmica em torno de sua publicação, que havia sido banido em determinadas escolas por conta do tema, e pensei: 'Os estúdios vão amar'. Que nada. Todos ficaram com medo da polêmica, e o projeto foi passando pela mão de diretores e nunca saía do papel", conta Bridges.

Quando o filme finalmente recebeu o sinal verde da produtora Weinstein, um outro roteirista, Michael Mitnick, foi integrado à equipe, e algumas mudanças importantes foram propostas à visão inicial de Bridges. "Eu me vi numa encruzilhada, porque o livro mexeu comigo de uma forma profunda, e queria fazer justiça a ele. Quando Harvey Weinstein [dono da Weinstein] me mostrou o que queria fazer, minha primeira reação foi: 'Mas isso é muito diferente do que eu imaginava'".

Bridges disse que se entregou quando os atores começaram a ser escalados. E o elenco é, de fato, estelar. A começar por Meryl Streep como a opositora de Bridges na liderança da comunidade, a sábia mais interessada em manter as coisas como estão. "Adoro ser a chefona", conta. Sua personagem já ficou famosa pela enorme peruca acinzentada, uma das marcas visuais mais curiosas de um filme repleto de imagens geradas por computação gráfica, com boa parte dos cenários criados após as filmagens, que aconteceram na África do Sul.

"Escrevi este livro há 21 anos. Dois anos depois recebi um telefonema de um agente de Jeff, interessado em fazer o filme. Naquele momento, todos achamos que seria fácil. Não foi. Mas quem sabe as coisas boas da vida não precisem mesmo de alguma complicação? A maioria das pessoas que estão hoje no filme não estariam nele se fosse feito há 18 anos. Quem espera, sempre alcança", disse Lowry, de 77 anos, durante o encontro.

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