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Diretor de filme sobre falhas da Justiça diz que fugiu do "estilo Datena"

Mariane Zendron

Do UOL, em Brasília

18/09/2014 19h50

O filme começa. Um jovem conta como foi preso depois de ter sido confundido com um estuprador. Não vemos seu rosto e não sabemos seu nome, o que aparece na tela são pinturas que ele mesmo fez durante o período no cárcere. Sua voz conta detalhes do pesadelo: o primeiro dia na delegacia, o momento em que foi "reconhecido" pela vítima, o desespero da sua mãe, a loucura na prisão, a dificuldade de se defender. Com uma lucidez ímpar, o jovem não chora, não há música dramática de fundo, mas seu discurso dá um nó na garganta do espectador.

Esse, no entanto, não é o único depoimento sem nome e sem rosto de "Sem Pena", documentário que abriu a competição de longas do Festival de Brasília. A maioria dos personagens só é revelada no final, o que dá força ao que é dito sobre o sistema da Justiça criminal no país. "Sei que essa decisão causa incômodo nas pessoas, mas queremos que elas se interessem mais pelo que é dito do que por quem diz", disse o diretor Eugênio Puppo, durante debate nesta quinta-feira (18), dia seguinte à exibição.

Um a um, os depoimentos, de presos, juízes, professores de direitos, jornalistas, vão revelando o fracasso do sistema criminal de um país que tem a população carcerária que mais cresce no mundo, sem que haja diminuição da violência. O desafio, o diretor afirma, foi evitar o sensacionalismo sem levantar a bandeira dos direitos humanos. "Quisemos fazer uma reflexão profunda e mostrar que estamos chafurdados na merda."

Evitando "estilo Datena"

Além de deixar de fora choros e música dramática, Puppo também contou ter cortado o depoimento de coronel Telhada, como ficou conhecido Paulo Adriano Lopes Telhada, comandante da Rota (Rondas Ostensivas Tobias Aguiar) de 2009 a 2012 e integrante da frente conhecida como "bancada da bala" na Câmara Municipal de São Paulo, onde exerce mandato de vereador desde 2013. "Ele fala um monte de obviedades de uma forma truculenta, e a gente achou que não agregaria em absolutamente nada [ao filme]."

O diretor também diz que se sentiu na obrigação de fugir do formato de programas televisivos que usam a violência como entretenimento. "Sempre falo desses programas que usam a violência como entretenimento, tipo Datena. Sentimos a necessidade de fugir disso. Não pegamos nenhum caso emblemático, como o da Suzane von Richthofen. Nosso foco é o cidadão comum, que sofre arbitrariedades todos os dias."

Antes da exibição em Brasília, o diretor disse que enfrentou dificuldades emocionais com o documentário. "O que me afetou foi ver essa camada da sociedade menos favorecida absolutamente à deriva, à mercê de 'sabe-se lá quem que acordou com a pá virada e decidiu ferrar 15 naquele dia'. É inconcebível", diz, referindo-se a erros cometidos por juízes.

Pareceria e estreia

A ideia do documentário surgiu de Marina Dias, ex-presidente do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa), que indicou a maioria dos entrevistados e ajudou o diretor a filmar uma audiência em que uma senhora negra é acusada de tráfico de drogas. Com a ajuda do instituto também foram feitas imagens dentro de presídios e celas. Da parceria, saíram centenas de horas de entrevistas, enxugadas em pouco mais de uma hora de documentário.

Bastante aplaudido pelo crítico público de Brasília, "Sem Pena" já conseguiu distribuição e chega a 12 cidades, como São Paulo, Rio, Brasília, Fortaleza, e outras capitais, no dia 2 de outubro. Não por acaso, esse é o mesmo dia em que ocorreu o massacre do Carandiru, em 1992, que acabou com o assassinato de 111 detentos.

Trailer do documentário "Sem Pena"