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Equipe de curta fala dos cuidados para fazer cenas de sexo com adolescentes

Cena do curta "Sem Coração", de Nara Normande - Divulgação
Cena do curta "Sem Coração", de Nara Normande Imagem: Divulgação

Mariane Zendron

Do UOL, em Brasília

23/09/2014 05h45

Durante sua pré-adolescência em Maceió (AL), a diretora Nara Normande ouvia garotos da sua idade falarem sobre uma menina, apelidada de Sem Coração por usar um marca-passo. Em uma piscina vazia, Sem Coração se deixava ser penetrada por cada um desses garotos. A história marcou Nara de uma tal maneira que ela decidiu transformar a história em um curta dirigido em parceria com o amigo e cineasta Tião.

Além de competir no Festival de Brasília, que premiará os concorrentes nesta terça (23), "Sem Coração" venceu a competição de curtas da Quinzena dos Realizadores, no Festival de Cannes.

Apesar da potência do enredo, a dupla de diretores tomou cuidado para não apontar dedos e não vitimar a protagonista. Apostou em contar com delicadeza a história da descoberta sexual e levantar o debate sobre o machismo, necessidade de aceitação e auto-estima dos personagens. Além do apelido, Sem Coração carrega uma imensa cicatriz no peito. "Fiquei muito tempo pensando em Sem Coração, quem era ela o que a motivava fazer aquilo", disse Nara.

Eduarda Samara - Junior Aragão/Divulgação - Junior Aragão/Divulgação
Eduarda Samara, atriz do curta-metragem "Sem Coração"
Imagem: Junior Aragão/Divulgação

O mesmo cuidado que teve com o tema, a dupla teve com as cenas de sexo. Um mês antes do início das filmagens, Nara foi para Porto de Pedras, em Alagoas, para recrutar nas escolas da região os adolescentes que ajudariam a contar essa história. Espalhou cartazes pela cidade e foi para as rádios anunciar o projeto.

O nome do filme assustou adultos e crianças da região. Os mais novos acreditaram se tratar de um filme de terror e entre adultos circulava o boato que o filme não passava de uma desculpa para tráfico de órgãos e até magia negra. A desconfiança da população aumentou quando veio à tona a confirmação de que haveria cenas de sexo com os adolescentes, mesmo que não explícitas.

Nesse momento, entraram em ação uma psicóloga e a atriz Maeve Jinkings ("O Som ao Redor"), que fez sua estreia como preparadora de elenco, para afastar os boatos e explicar a real intenção da equipe. "Maeve é uma pessoa muito sensível e que se interessou pelo projeto logo de cara. Tem muita experiência como atriz, por isso a escolhemos como preparadora", disse Tião, ao UOL.

Cenas de sexo

Sem Coração foi interpretada por Eduarda Samara, que tinha apenas 12 anos quando as filmagens começaram e que nunca havia trabalhado como atriz . À reportagem, a jovem, hoje com 14, disse que sua mãe foi resistente no início. "Ela não gostou da ideia, mas insisti, disse queria muito e ela acabou deixando", disse Duda, como gosta de ser chamada.

Maeve contou que o trabalho para convencer os pais a deixarem os filhos participarem do curta foi totalmente apoiado na honestidade. "Deixamos claro tudo o que ocorreria e como ocorreria. Explicamos que era uma encenação do sexo e não a ação real. Usava como exemplo a morte de personagens e falava que, assim como a morte em cena não é real, o sexo também não".

"Fomos sinceros desde o início porque a intenção era que a experiência fosse boa para todos os envolvidos. Estabelecemos a relação na base da confiança", disse Tião. Nas filmagens, os atores também não ficam nus e ainda foi usada uma bexiga cheia entre eles para impedir o contato físico.

A preparadora de elenco contou também que não foram uma ou duas, mas várias conversas com o elenco antes das filmagens começarem, para que os adolescentes, além de entenderem, ficassem à vontade em cena. "No começo, havia muitos risos nervosos e desconforto. Um dia, sentei em uma lanchonete só com os meninos, pedimos refrigerantes e conversamos sobre sexo. Sinto que foi libertador para muitos que nunca tinham falado sobre o assunto com a família", disse Maeve.

Trailer do curta "Sem Coração"

Maturidade aos 12 anos

Duda impressionou a equipe ao demonstrar maturidade em relação ao assunto. "Algumas pessoas vêm me perguntar se é verdade que fiz 'aquilo' em cena e respondo: 'gente eu apenas interpretei o que uma menina real sofreu'". A atriz-mirim diz que ficou triste muitas vezes com a história de Sem Coração, o que serviu como um incentivo a mais para interpretá-la.

Mesmo com tudo ocorrendo com tranquilidade, Maeve ficou preocupada com o fim das filmagens, que poderia trazer novos problemas a Duda, como provocações e piadas. "Por mais que a gente tenha conversado com os meninos sobre respeito, Duda é uma garota crescendo em um mundo machista e conservador. Não somos inocentes em achar que nosso cuidado tenha o poder de mudar tudo, mas falamos com eles. Deixamos esses questionamentos".

"Conversamos com Duda muitas vezes sobre a preocupação de que alguém pudesse falar algumas coisa depois que fôssemos embora e ela disse que nem liga para críticas. Duda é igual ao Neymar, quando recebe críticas, quer driblar ainda mais", completou Tião.

Os pais da jovem ainda não assistiram ao filme, o que causa certa tensão. "Não sei como minha mãe vai reagir, mas ela já sabe de tudo o que acontece". Para a felicidade de Duda, sua mãe confia muito na equipe do filme, principalmente em Maeve, que acompanhou a jovem em sua viagem ao Festival de Brasília. "Disse pra minha mãe já ir se acostumando, porque ainda farei muitas viagens como essa", disse Duda, determinada a seguir a carreira de atriz.