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UOL testa aplicativo que dá independência a deficientes visuais no cinema

Mariane Zendron

Do UOL, em São Paulo

30/10/2014 06h15

Aguinaldo Pestana, 52 anos, é deficiente visual desde 1997, quando levou um tiro durante um assalto em São Paulo. A bala, que atravessou sua cabeça, danificou seu nervo óptico e lhe tirou totalmente a visão. Depois de 17 anos, o contabilista diz ser 95% independente, graças à tecnologia. Com seu smartphone, ele consegue escolher a roupa, acertar o caminho de casa, conversar com os amigos por mensagem de texto, pagar contas, fazer compras...

Nesses 5% de dependência está a tarefa de ir ao cinema. Para entender o que está na tela, além dos diálogos dos personagens, é preciso contar com a boa vontade de quem está ao lado para descrever o contexto das cenas. "É muito difícil que a pessoa ao seu lado tenha paciência de te contar o que está se passando na tela", diz ele ao UOL. Mesmo quando há vontade do acompanhante, corre-se o rico de ouvir muitos “shius” e “psius”.

O problema de Aguinaldo e de outros deficientes visuais, no entanto, está mais próximo de ser resolvido, pois já há aplicativos que permitem que a audiodescrição do filme seja baixada em smartphones e tablets antes da sessão. O UOL convidou Aguinaldo para testar o MovieReading, em uma sessão do filme brasileiro "A Despedida", de Marcelo Galvão, presente na programação da Mostra de São Paulo. O recurso ainda está em fase de testes e o filme de Galvão foi o único do evento a aderir à novidade. Disponível para as plataformas Android e iOS, o aplicativo e o áudio podem ser baixados gratuitamente. 

Como funciona

Recomenda-se que o download do aplicativo e da audiodescrição do filme seja feito em casa para não depender da conexão da sala do cinema. É aconselhável ainda um teste simples de compatibilidade, que deve ser feito em frente a um computador com auto-falantes. Para a sessão, o usuário precisará de fones de ouvido com microfones. As instruções acompanham o aplicativo.

Desenvolvido na Itália, o programa tem o mesmo princípio do Shazam, que reconhece músicas gravadas e que, em alguns casos, reproduz a letra das canções. No caso do MovieReading, a audiodescrição é sincronizada à obra assim que o microfone do dispositivo reconhece o áudio do filme.

O narrador descreve o que é importante para cena e perceptível apenas aos olhos, como “ela acende um cigarro e se senta perto da janela”, ou “ele amarra o cadarço do sapato preto e caminha até a porta”. A audiodescrição não é novidade no Brasil, mas sua inclusão em sessões de cinema ainda é pouco prática. Antes do aplicativo, um narrador precisava de um espaço para narrar o filme ao vivo, com transmissão para fones de ouvidos distribuídos antes da sessão.

Avaliação do aplicativo

Aguinaldo permaneceu calado durante toda a sessão, mas reagiu assim que o letreiro subiu pela tela grande da sala 3 do Espaço Itaú, no Shopping Frei Caneca. “Decidi que ia avaliar o aplicativo de acordo com o número de perguntas que precisaria fazer para entender o filme. Não precisei fazer nenhuma”, explicou ele.

Mesmo interessado em falar do aplicativo, ele também quis comentar a obra. “Eu achei o filme picante”. No filme, vencedor de quatro prêmios no Festival de Gramado deste ano, Nelson Xavier vive Almirante, um homem com mais de 90 anos que decide levantar da cama e se despedir da vida e da amante, Morena (Juliana Paes).

Na mesma sessão ainda estavam outros três deficientes visuais. Entre eles, Paulo Romeu Filho, que cuida do Blog da Audiodescrição. “As pessoas que nos acompanham nas sessões – amigos, familiares – também querem prestar atenção no filme. Muitas vezes pergunto o que está acontecendo e recebo como resposta: ‘peraí que já te conto’. Sem a audiodescrição, provavelmente sairia irritado do filme”.

Olhos para o produtor de "A Despedida"

Como acontece com a maioria dos filmes nacionais da Mostra, a exibição de "A Despedida" contou com a presença do diretor, Marcelo Galvão, e foi encerrada com perguntas do público. Apesar da qualidade do longa, a plateia, formada por maioria vidente, fez perguntas somente sobre a eficiência e funcionamento do aplicativo.

Trabalhando com audiodescrição desde “Colegas”, filme que venceu o Festival de Gramado de 2012, Galvão disse que foi atrás do recurso em função do produtor e amigo Marçal Souza, que perdeu a visão em 2007.  “Queria que o Marçal ‘visse’ os filmes que ele faz, mas também queríamos um jeito mais fácil de fazer isso. Em contato com o Maurício [Santana], fiquei sabendo do aplicativo e fizemos essa parceria”.

Maurício Santana está à frente da Iguale, empresa que trabalha com audiodescrição desde 2008. “Além de mais prático, por não exigir estrutura da sala, o áudio do aplicativo tem mais qualidade por ser previamente gravado e não receber interferências de ruídos exteriores”, disse Maurício. O projeto para “A Despedida” foi feito em parceria com Mimi Aragón e Kemi Oshiro. O aplicativo também conta com legendas acessíveis para pessoas com deficiência auditiva.

Ensinando independência

Quando Aguinaldo perdeu a visão, seus dois filhos eram pequenos --Bárbara tinha quatro anos e Bruno Rafael, um ano e meio. "Meu maior medo era ficar dependente das pessoas", diz o contabilista. 

O período da adaptação foi sofrido, até porque há pouco apoio mesmo de quem está mais próximo. “Quando você fica cego, todos acham que morreu e não te chamam para mais nada”.

Com mais um ponto positivo para a independência, Aguinaldo diz que vai contar a experiência para outros deficientes visuais. Aposentado, ele se dedica há três anos, por meio de um webcast, a ensinar deficientes visuais a mexerem em smartphones táteis.

"Quando fiquei cego, percebi que outros cegos deixavam de estudar por não saberem lidar com computadores e celulares. Sempre que eu posso, ajudo cegos a aproveitarem a tecnologia. Hoje, há mais de mil aplicativos que podem ajudar os cegos". Seu programa, "Contraponto", vai ao ar todas as segundas-feiras, às 20h, e é uma iniciativa da Associação dos Ex-alunos do Instituto Benjamin Constant.