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Conheça as seis "pirações" científicas da aventura espacial "Interestelar"

Salvador Nogueira

Especial para o UOL*

12/11/2014 05h00

O cineasta Christopher Nolan mergulhou fundo na física, na astronomia, na história e na biologia para produzir seu grande épico espacial, “Interestelar”. Ele acertou em muita coisa, errou em outras tantas, mas não deixou de apresentar conceitos radicais ligados à ciência real para construir sua história. Dê uma olhada nos principais tópicos abordados durante o filme.

AVISO: contém spoilers. Se você não quer saber detalhes da trama, não continue a leitura além deste ponto.

1. A ida à Lua foi uma fraude?

lua - Reprodução - Reprodução
Chegada do homem à Lua, em 1969
Imagem: Reprodução

Essa é uma das coisas mais engraçadas do filme. Christopher Nolan pega a paranoia de que as missões Apollo, que levaram o homem à Lua em 1969, foram fraudadas (a propósito, não foram!) e a eleva à enésima potência. Ele imagina um futuro tão assolado pela crise da falta de alimentos que pega muito mal dizer que se gastou montanhas de dinheiro em programa espacial. Por essa razão, tornou-se conveniente para o governo americano abraçar as teorias da conspiração de que o programa Apollo foi uma farsa, engendrada brilhantemente só para motivar os soviéticos a gastarem fortunas em engenhocas inúteis.

No cenário apocalíptico futuro do filme, a Nasa teve de se tornar uma agência clandestina, para que a população não se rebelasse contra o governo. E, por incrível que pareça, não é um grande disparate. É apenas uma extrapolação do que vemos hoje. Atualmente, há muitas pessoas que defendem a ideia de que é imoral gastar com exploração espacial enquanto ainda há gente passando fome na Terra.

Esse argumento não faz o menor sentido, uma vez que os grandes avanços tecnológicos que melhoram a vida das pessoas muitas vezes são obtidos para atender outros objetivos, aparentemente de pouco fundo prático. O que seria de nós hoje sem os computadores portáteis? Entretanto, não houve grande motivação para o desenvolvimento da miniaturização dos computadores até que tenha sido preciso instalar um a bordo de uma espaçonave Apollo, justamente para realizar os pousos lunares.

O filme tenta enfatizar esse ângulo, muitas vezes ignorado pelo público em geral, ao realçar um futuro potencial em que a população da Terra só pode realmente ser salva pelo programa espacial.

2. Um desastre ambiental pode tornar a Terra inabitável?

nuvem - Reprodução - Reprodução
A tempestade de poeira mostrada em "Interestelar"
Imagem: Reprodução

O que se pode dizer é que isso já aconteceu antes na história da Terra. Cerca de 2,3 bilhões de anos atrás, houve um grande e súbito aumento da presença de oxigênio na atmosfera. Naquela época, o planeta era habitado exclusivamente por bactérias, e, para a imensa maioria delas, o oxigênio era tóxico. Resultado: uma grande matança de espécies.

Esse aumento do oxigênio foi ocasionado por criaturas que o produziam por meio da fotossíntese, e graças a elas os seres humanos puderam evoluir. Contudo, nós desenvolvemos tecnologias poderosas e também começamos a alterar a atmosfera terrestre. Há hoje mais gás carbônico atmosférico, injetado pela queima de combustíveis fósseis, do que houve em muitos milhares de anos.

Um consenso entre os cientistas é o de que as transformações produzidas pelo homem são graves, mas dificilmente tornariam o planeta inabitável. Outro consenso é o de que podemos enfrentar efeitos imprevisíveis ao alterar de forma radical um sistema tão complexo.

Em "Interestelar", crescentes tempestades de poeira ameaçam destruir todas as plantações do planeta, levando a humanidade à morte por inanição. É um cenário pessimista? Sem dúvida. Mas não é impensável. Prova disso é que muitas das entrevistas exibidas no começo do filme são reais, extraídas de um documentário, e dizem respeito a fenômenos atmosféricos que já estão acontecendo agora na Terra.

3. Podem existir buracos de minhoca?

kip - Divulgação - Divulgação
O físico americano Kip Thorne
Imagem: Divulgação

Esta foi a saída encontrada por Nolan para permitir que, com tecnologia que não fosse radicalmente diferente da atual, nossos astronautas fossem capazes de visitar sistemas planetários em outra galáxia.

Os buracos de minhoca (ou de verme, dependendo da tradução) são uma espécie de túnel que liga duas partes distantes do espaço (e possivelmente do tempo também). O filme se dá ao trabalho de explicar em linhas gerais do que se trata, e Christopher Nolan fez parceria com um dos maiores especialistas no assunto, o físico americano Kip Thorne, para dar tratamento realista ao tema.

Em tese, segundo a relatividade geral de Albert Einstein, é possível haver essas passagens que ligam pontos distantes do espaço-tempo. Mas não é tão simples assim. Para manter a passagem aberta, estima-se a necessidade da existência de um tipo exótico de matéria, que tenha densidade de energia negativa. Ninguém sabe se isso pode sequer existir na realidade. Sabemos que, em pequena escala, é possível roubar energia do próprio vácuo, criando ali um ambiente com uma módica quantidade de energia negativa. Contudo, as quantidades exigidas para manter um buraco de minhoca aberto e com uma passagem suficiente para que ele seja atravessável por uma espaçonave em muito excedem esse efeito elementar da mecânica quântica.

Poderia uma civilização ultratecnológica do futuro saber de algo que não sabemos e permitir a criação desses túneis espaciais? Essa é a premissa de Nolan, que nem chega a ser nova. O mesmo artefato foi usado por Carl Sagan (depois de consultar o mesmíssimo Kip Thorne) em seu romance "Contato", depois adaptado para o cinema por Robert Zemeckis.

4. Um buraco negro é capaz de distorcer o tempo?

buraco negro - AP/Nasa - AP/Nasa
Ilustração da Nasa que representa o buraco negro
Imagem: AP/Nasa

Em uma palavra: sim. Um buraco negro é uma das mais bizarras criaturas do zoológico cósmico. Ele é criado quando uma estrela de alta massa implode e concentra toda a sua massa num único ponto --a singularidade. Ao redor dela, surge uma região do espaço onde a gravidade é tão intensa que nada pode escapar dela, nem mesmo a luz. Por isso o objeto ganhou o sugestivo nome de buraco negro.

A teoria da relatividade geral de Einstein já mostrou que tempo e espaço estão intimamente ligados com a gravidade. O que experimentamos como a força gravitacional na verdade é uma curvatura que distorce o espaço e o tempo! Sob campos gravitacionais relativamente fracos, como os da Terra e do Sol, esse efeito é muito pequeno. Mas, nas redondezas de um buraco negro, ele se torna muito significativo.

O único problema --e um que Nolan procura evitar em seu filme-- é que as redondezas de um buraco negro tendem a destroçar você antes que possa experimentar todas essas coisas. O que nos leva aos planetas que ele apresenta no filme.

5. Os planetas de "Insterestelar" podem existir?

oceano - Divulgação - Divulgação
Anne Hathaway, em cena de "Interestelar" que mostra planeta com oceano
Imagem: Divulgação

Os astronautas da espaçonave Endurance visitam três mundos ao longo do filme, todos orbitando em torno de um buraco negro. Até aí, sem grandes problemas. Planetas podem perfeitamente orbitar de forma estável em torno desses objetos. Mas a órbita precisa ser suficientemente distante.

O mais próximo dos planetas está quase na borda do buraco negro. Tudo que conhecemos sugere que essa órbita seria instável, e ele seria destruído pela gravidade colossal da singularidade. Ainda que não fosse, ele teria sua rotação travada, com a mesma face o tempo todo voltada para o buraco negro. Isso torna impossíveis aquelas ondas oceânicas gigantes que vemos no filme.

O segundo planeta é um mundo gélido, com nuvens sólidas congeladas flutuando pela atmosfera. Segundo o astrônomo americano Phil Plait, esse cenário, embora espetaculoso, não é realista. Não haveria como as nuvens sólidas se sustentarem no ar daquela forma.

Por fim, o terceiro planeta parece ser o mais simpático à vida como a conhecemos. Nada de improvável ali, exceto uma coisa: o ambiente ao redor de um buraco negro não é o ideal para você criar seus filhos. Mesmo numa órbita distante, rajadas poderosas de radiação seriam disparadas da borda do buraco, conforme ele despedaça matéria e a engole. Isso seria suficiente para esterilizar os mundos ao seu redor.

Resumo da ópera: sem o buraco negro, o filme perderia o charme. Com ele, perde a credibilidade. Mas quase ninguém vai ao cinema para ver documentários de ciência, e Nolan sabe disso.

6. Pode-se voltar de dentro de um buraco negro?

Por tudo que conhecemos da física, a entrada num buraco negro é um caminho sem volta. Ainda que você não seja despedaçado antes de cair lá, ao cruzar o chamado horizonte dos eventos, você está numa região da qual nem mesmo a coisa mais rápida do mundo --a luz-- consegue escapar. Nós, como somos bem mais lentos, não teríamos chance.

Contudo, Nolan aqui aposta na física que ainda não conhecemos. A verdade é que ainda tem muito chão pela frente até que os cientistas sejam realmente capazes de entender o que acontece no interior de um buraco negro. Lá é preciso combinar duas teorias que no geral não se bicam: a relatividade geral, que fala da gravidade, e a mecânica quântica, que fala do comportamento de partículas. Faz algum tempo que os cientistas tentam desenvolver uma teoria de gravidade quântica, que una as duas pontas, mas ainda não chegamos lá.

Sem ela, a ficção científica tem liberdade para especular sobre o que acontece no interior de um buraco negro e até mesmo imaginar formas cientificamente respeitáveis de se sair dele, explorando ideias como a possível existência de outras dimensões físicas. Nolan apostou nessa saída para dar um final mais contundente ao seu épico espacial. Kip Thorne, produtor-executivo do filme, não reclamou.

* Salvador Nogueira é jornalista de ciência, sócio-fundador da Associação Aeroespacial Brasileira, autor de oito livros e blogueiro da Folha de S.Paulo.

Veja o trailer de "Interestelar"