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Oscar 2015 parece dizer: "As melhores coisas que criamos estão no passado"

Ana Maria Bahiana

Do UOL, em Los Angeles

23/02/2015 07h00

Para entender o que é e como pensa a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, basta olhar o número de abertura da festa de entrega do Oscar, na noite deste domingo (22). Na primeira parte, o anfitrião Neil Patrick Harris e Anna Kendrick, com o apoio de excelentes efeitos de cena, cantaram (literalmente) os louvores de Hollywood, seu poder de encantar, de arrebatar,  de despertar talentos, de inspirar e dar forma a sonhos.

Na segunda parte, Jack Black, erguendo-se “espontaneamente” da plateia do teatro Dolby, desenrolou uma longa lista de tudo o que está errado com a indústria: que ninguém mais vai ao cinema, que não se fazem mais filmes de qualidade, filmes para adultos, que tudo é super-herói, franquia e pipoca, que a internet vai acabar com o cinema etc.

É assim que a cabeça desse povo funciona. Metade autoestima em alta, dando tapinhas nas próprias costas. Metade batendo no peito, cheios de remorso e autocrítica.

Lady Gaga cantando "A Noviça Rebelde" foi um momento de auto-congratulação. Dar quatro Oscar a "Birdman", um filme altamente crítico do que a indústria faz com seus talentos (e consigo mesma) é o momento autocrítica. E não foram quaisquer quatro Oscar – foram quatro dos mais nobres, aqueles que pela própria categoria definem a arte e o ofício de fazer cinema: melhor filme, diretor, roteiro original, fotografia. Só faltou mesmo Michael Keaton como melhor ator, mas o departamento de atores da Academia, o mais numeroso de todos, adora um papel que envolva um desafio físico. E aí só dava Eddie Redmayne mesmo.

Todo Oscar quer dizer alguma coisa, e eis o que este está dizendo: as melhores coisas que criamos estão no passado; não estamos fazendo nosso melhor trabalho; temos que nos olhar de fora, criticamente, se quisermos mudar alguma coisa.

E isso não foi dito apenas pelas vitórias de "Birdman" --os dois outros filmes multipremiados da noite foram, todos eles, obras independentes, financiadas e realizadas fora dos grandes estúdios, todas profundamente autorais: "Whiplash" (três Oscar), "O Grande Hotel Budapeste" (quatro Oscar).

Mesmo "O Jogo da Imitação", que rendeu um (esperado) Oscar de melhor roteiro adaptado para Graham Moore, é uma história de nadar contra a corrente: Moore, um ex-assistente de produção e admirador de Alan Turing desde a infância, lutou durante anos para realizar o projeto, sendo constantemente rejeitado, com a explicação de que a história era “pouco atraente” e “comercialmente inviável”.

Nos prêmios e no tom, este foi um Oscar de temas sérios, um momento de reflexão. Em contraponto com as piadas nem sempre engraçadas que os roteiristas prepararam para Neil Patrick Harris, os discursos de agradecimento (e da própria presidente da Academia, Cheryl Boone Isaacs) cobriram praticamente todo o terreno das "Grandes Causas": igualdade racial, sexual, econômica; respeito e dignidade para quem sofre de grandes moléstias; defesa da privacidade e da liberdade de expressão.

Só faltou o meio-ambiente, mas para isso o documentário "Virunga" teria que ter ganho em vez de "Citizenfour". Um alienígena em visita a Hollywood poderia achar que estava vendo um simpósio de direitos humanos ali no teatro Dolby.

A pedra mais substancial na vidraça da Academia –a falta de indicados não-caucasianos, principalmente do ator principal de "Selma", David Oyelowo, e da diretora Ava DuVernay– foi neutralizada pela presença maciça de cinquenta tons de pele no palco no Dolby, mais piadas pontuais de Neal Patrick Harris (começando logo pela primeira frase da noite).

A estratégia funcionou: do tapete vermelho aos bastidores, ninguém mais falava na questão, e a Academia (e o Oscar) saíam-se como os exemplos perfeitos de todas as causas e boas intenções que os discursos tanto repetiam.

No final, o Oscar de 2015 deixa uma imagem para contrapor à selfie com pizza de Ellen DeGeneres, ano passado: Neil Patrick Harris de cueca, referenciando uma sequência de "Birdman", que por sua vez servia de metáfora para os delírios do ego, postos à mostra. O rei está nu? É isso que Hollywood está dizendo sobre si mesma?