Biografia de Nicole Puzzi leva ao divã símbolo sexual da Boca do Lixo
"Irei apresentar a minha alma porque o meu corpo, com certeza, vocês já viram", escreve em sua autobiografia a musa da pornochanchada Nicole Puzzi. “Se não viram, corram até alguma locadora ou internet. Ou, então, deixa pra lá, é só mais um corpo de uma mulher que não existe mais e sobrevive apenas na imaginação de uns malucos”.
Em “A Boca de São Paulo” (editora Laços), a atriz e apresentadora do programa do Canal Brasil “Pornolândia” desnuda sua trajetória atuando em diversos longas da Boca do Lixo. Da garota ingênua que se tornou símbolo sexual e foi perseguida pelo moralismo até a autoaceitação por meio da cultura e filosofia. Ela também passa a limpo preconceitos com a pornochanchada.
“Éramos musas do sexo em uma época reprimida, moralista e desinformada”, Nicole define ao UOL. “A pornochanchada foi a maior vítima de preconceito cultural deste país, e grande parte desse preconceito é na verdade preconceito contra a mulher. Um falso moralismo. Algumas moças ‘de família’, com as quais convivia na escola ou no dia a dia, faziam coisas que deixavam qualquer pornochanchada parecendo filme infantil, só que às escondidas. Eu, musa nas telas, sempre tive uma vida sexual tranquila. A imagem sexualizada não sexualiza a vida íntima. Não é necessariamente devassa a mulher mistificada pelo sexo por meio da mídia. Até hoje sofro preconceito por ser ‘uma atriz de pornochanchada’.”
Uma confusão comum que Nicole diz encontrar até hoje é a entre a pornochanchada (filmes eróticos) e a pornografia (com sexo explícito). As pornochanchadas começaram nos anos 1960 e foram extremamente populares até os anos 1980, quando começaram a perder espaço para o cinema pornográfico.
Para a atriz, elas tiveram uma grande importância na educação sexual, em uma época de grande repressão ao corpo. Ao final do seu arco, tornou-se comum as pornochanchadas exibirem detalhes de sexo explícito gravados com outras atrizes. “Muitos bons atores fizeram pornochanchada, não sei se escondem ou não esse fato. Isso não é problema meu. Cuidarei dos meus filmes e de minhas histórias”.
Filha de fazendeiros no Paraná, Nicole chegou em São Paulo com 11 anos em 1970. “Meus pais não tinham estudo, mas muita bondade e sabedoria. Eu sonhava, como qualquer menina da minha idade em ir para Londres e ver os Beatles. Era muito ingênua, mas já sabia que o mundo era muito grande e eu queria ir atrás dele. Eu tinha uma cultura razoável, mas era uma época muito mais fechada na ditadura, achava que Machado de Assis era branco e morria de medo dos militares. Até que um dia comecei a desfilar para ganhar o meu dinheiro. Fui para a TV Tupi, mas ainda não tinha acesso à cultura. Aí entrei em contato com gente da antiga Vera Cruz, pessoas antenadas que sabiam tudo, e fiquei conhecendo a Boca.”
Conhecendo Nietzsche num bar da Boca do Lixo
Nicole Puzzi fez em 1975 o seu primeiro filme da Boca do Lixo, “Possuídas Pelo Pecado”, pornochanchada dirigida por Jean Garret, a primeira de uma série de produções em que atuaria. No livro, ela narra a cena em que o cinema da Boca do Lixo expandiu os horizontes de pensamento da menina ingênua que veio do interior do Paraná.
“Ouvi no bar Soberano (conhecido reduto de cineastas da Boca do Lixo) todo mundo falando de um alemão com um nome impronunciável. Achei interessantes as ideias e perguntei se eu podia conhecer ele, se ele trabalhava na Boca. Todo mundo riu. Foi a primeira vez que eu ouvi falar no Nietzsche. Aí começou a minha pesquisa de tudo o que eu queria ler. Passei a conhecer e o que eu não conhecia eu perguntava sobre pensadores e filósofos. Todo o meu conhecimento dos filósofos veio pela pornochanchada.”
O livro de Nicole Puzzi descreve com surpreendente carinho a relação com os cineastas e as equipes técnicas da Boca do Lixo, antro de perdição no imaginário da época.
“Nós éramos marginais no sentido que estávamos à margem de uma sociedade carregada de tabus e preconceito. Uma sociedade retrógrada, que vivia no século 19, enquanto nós naquela época já estávamos em 2015 . Eu trabalhava porque eu gostava, eram pessoas carinhosas e que colaboravam entre si. Não tinha teste de sofá. Se alguém era gay, era gay, se era lésbica, era lésbica, e ninguém se preocupava com isso. A babá da minha filha foi um travesti. Nós já convivíamos com aquilo na Boca enquanto a sociedade ‘de bem’ ainda estava no século 19”.
A atriz revela como sentiu na pele a perseguição das supostas pessoas “de bem”, em particular depois que gravou “Ariella” em 1980. Com direito a cena de beijo lésbico com Christiane Torloni, o filme teve inserção trechos pornográficos gravados por uma atriz de sexo explícito. Ela passou a ser xingada pelas ruas, levar puxões de cabelo e agressões de mulheres cujos maridos eram fãs de Nicole. Recebia cartas ameaçadoras ou de paixão indecorosa, ameaças, telefonemas de madrugada, ameaças de morte, espancamento e sequestro.
“Pensava em chamar a polícia, mas não havia quem me defendesse, afinal, eu era atriz de pornochanchada, e isso, no conceito ignorante da maioria, significava sentença fatal.”
“E essa agressividade era uma reação hipócrita. Muito se fala que os filmes de pornochanchada eram o ‘ópio para o povo’, películas para o povão, mas então como esses homens e mulheres das classes média e média alta me conheciam? Quando estudava no colégio Objetivo os meninos caíam em cima e todos me conheciam. Médicos, advogados, eu só era conhecida pela classe A. Era uma chuva de pessoas da alta sociedade e quando eu ia em favelas fazer trabalho social como voluntária ninguém sabia quem eu era. Eu não sabia me defender e deixava a mediocridade me abater. Os mal resolvidos, os preconceituosos, invejosos e problemáticos de toda espécie me atingiam.”
Nicole Puzzi também fala do padrão duplo pelo qual o popular cinema da Boca do Lixo era julgado em comparação com outras vertentes nacionais, como o cinema marginal e o cinema novo.
“Eu acho que o cinema novo do Glauber Rocha e o cinema marginal do Ozualdo Candeias são autenticamente brasileiros, mas o nosso da Boca do Lixo era tão autêntico quanto. Porque era o cinema que podia ser feito na repressão e nós não tínhamos apoio de nenhum órgão governamental. E fazíamos sucesso. ‘Deus e o Diabo na Terra do Sol’ não deve ter tido a bilheteria que a pior das pornochanchadas tinha somente na primeira semana de cartaz.”
O machismo feminino
“A batalha feminista naquela época tinha dois lados da moeda: a libertação da mulher e a libertinagem estimulada pelos machões”, diz Nicole Puzzi.
“Infelizmente acho que até hoje pouca coisa mudou e muitas mulheres hoje são mais machistas que os próprios homens. Estamos numa sociedade da vaidade e ditada pelo machismo e elas não se dão conta de que quando falam mal da aparência de outra mulher estão aumentando o preconceito contra elas mesmas. Falta muito para o feminismo se estabelecer no Brasil. É respeitar a outra mulher em suas decisões. Quando vemos falar mal de alguma artistas em alguma artista na rede social, costuma ser muito mais as mulheres falando mal.”
Nicole Puzzi
A imagem sexualizada não sexualiza a vida íntima. Não é necessariamente devassa a mulher mistificada pelo sexo por meio da mídia.
“É um preconceito que vai além das mulheres. Muita gente pervertida tenta disfarçar seus impulsos sexuais tornando-se critico e fofoqueiro do sexo do outro”, disse, referindo-se aos grupos que ameaçam boicotar empresas por mostrarem afeto entre pessoas do mesmo sexo em suas propagandas.
“Eu respeito os evangélicos, têm evangélicos que se preocupam com coisas mais importantes, como a violência e a agressão contra a mulher. Que se preocupam em preservar a própria família e não fiscalizar a sexualidade alheia. Não acho isso digno de uma religião ou de um bom evangélico, católico, muçulmano, judeu ou o que for. As pessoas em geral no Brasil são muito liberais, porém quando se trata da sexualidade alheia elas podem ser mais destrutivas que o Estados Islâmico ou o Boko Haram”.
Além de seu programa no Canal Brasil, Nicole Puzzi se dedica hoje ao ativismo de defesa dos animais e terá uma peça de sua autoria, “A Pornochanchada que Nos Pariu”, estreando no segundo semestre, dirigida pelo ator, diretor e dramaturgo Paulo Faria. O livro “A Boca de São Paulo” é o primeiro da “Coleção do Cinema Nacional” da editora Laços, que traz memórias de atrizes, diretores e personalidades da Boca do Lixo.
“Percebemos essa lacuna histórica de um pessoal que contribuiu muito para o cinema nacional e ficou meio esquecido”, disse ao UOL Kendi Sakamoto, da Laços. “Algumas musas da Boca do Lixo que abordamos não querem falar, outras querem falar muito. Muitas já tinham prontas a biografia e não achavam editores e ficamos felizes em dar esta voz a elas.”
O lançamento de “A Boca de São Paulo” será no dia 22 de junho, segunda-feira, a partir das 19h, no Centro Universitário Belas Artes. Ao lado do metrô Ana Rosa.
Frases fortes: veja trechos extraídos da biografia de Nicole Puzzi
Os filmes de 007, em minha opinião, parecem querer gritar que os homens têm pênis e que sabem usá-lo.
O Brasil que vende nas telonas, com poucas exceções, é o Brasil periférico, violento, pobre e atrasado, a vida severina dos nordestinos, ou, então, com uma pitada ou pitadona de sensualidade.
A pornochanchada era uma mistura de talento e canastrada, criatividade e mediocridade, genialidade e estapafurdice, tesão e frigidez, homens e mulheres, sexo e tabu, liberdade e censura, gente e gente. Enfim... Vida!
A irreverência, a alegria, a falta de regra e o deboche nunca foram tão intensamente vividos entre artistas, intelectuais, homens de negócios, mulheres lindas, gênios, idealistas, visionários, desregrados demais, ao lado de seres apátridas, bêbados, prostitutas, mendigos, criminosos, trombadinhas e, ainda assim, humanos, demasiadamente humanos. Vidas estranhas, terríveis, extravagantes, mas pujantes. Dentro dessa zona, com e sem trocadilho, pautavam a ética, o trabalho, o profissionalismo, a dedicação e o respeito. Uma espécie de cumplicidade marginal. Fraternidade de delinquentes.
Era um viver à margem da sociedade normal, moralista, estúpida e medíocre, e realizar filmes engraçados, dramáticos, sérios, bons, ruins, cafajestes, sem estética, igualzinho à outra face que os seres humanos não dão.
Esse período de difícil sobrevivência do nosso cinema é muito importante para a compreensão da cultura e do povo brasileiro. O machismo, o jeitinho, a sexualidade, a malandragem, o comportamento, a moda, enfim, usos e costumes de uma geração encontram-se nos rolos dessas produções baratas bem mais do que nas do "autêntico" cinema nacional.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.