Esmagados pelos blockbusters, cineastas veem crise em filmes autorais
“Se o cinema independente nacional continuar sendo tratado como é hoje, ele vai sumir”. A fala em tom alarmista de Jean Thomas Bernardini, diretor da distribuidora Imovision, pode soar exagerada, mas reflete uma preocupação de uma parcela significativa dos autores de cinema no Brasil.
Longas de médio e pequeno porte, os chamados filmes autorais, têm amargado, ano após ano, bilheteria pífia no circuito comercial. São produções que passam por festivais internacionais, voltam ao Brasil com prêmios e críticas positivas, mas quando finalmente aterrissam nas salas, somam uma média de 10 mil espectadores.Em outros tempos, filmes sem ampla distribuição e apelo do grande público, como “Amarelo Manga” (2002), de Claudio Assis, e “Cinema, Aspirina e Urubus” (2005), de Marcelo Gomes, chegavam a fazer 120 mil espectadores.
“Partiram de uma visão equivocada. Primeiro foram fazer muitos filmes, para depois ir atrás dos exibidores. Isso afunila no final e não adianta nada. Limita o lançamento”, observa Bernardini, apontando o crescimento do cinema nacional.
A produção de longas nacionais deu um salto em comparação ao início dos anos 2000. O circuito acompanhou o crescimento, alcançando 2,8 mil salas, mas, em movimento inverso, o mercado exibidor se retraiu para esses filmes. Mesmo com carimbos internacionais, “Casa Grande”, de Fellipe Barbosa, e o drama de guerra com co-produção internacional “A Estrada 47”, de Vicente Ferraz, não passaram da casa dos 30 mil ingressos vendidos.
Incluindo as comédias nacionais, as produções brasileiras atraíram 7,4 milhões de pessoas no 1º semestre, uma queda de 35,7% em relação ao mesmo período do ano passado.
Nos últimos anos, poucas produções dessa seara mais independente atingiram os três dígitos: “Praia do Futuro”, de Karin Aïmuz, e “Hoje Eu Quero Voltar Sozinho”, de Daniel Ribeiro, fizeram, respectivamente, 133 mil e 204 mil espectadores.
“É muito pouco. O filme mais badalado da Argentina, 'Relatos Selvagens', fez 3 milhões no país”, compara o cineasta pernambucano Lírio Ferreira, que recentemente revelou sua preocupação com o baixo público de seu último filme, "Sangue Azul”, em depoimento ao "Diário de Pernambuco".
Lei
Com passagem pelo Festival de Berlim e prêmios em Paulínia e no Rio, “Sangue Azul” foi idealizado para ser o filme mais comercial da carreira do cineasta, desde a locação em Fernando de Noronha até o papel de protagonista para Daniel de Oliveira.
O longa chegou a entrar em um complexo de cinemas em um shopping center em Recife, após o diretor ligar pessoalmente para pedir uma chance além da primeira semana. Em vão. “Sangue Azul” foi visto por apenas 9 mil espectadores – e se tornou seu filme menos visto.
Isso ainda ocorre mesmo em um cenário que já conta com uma cota de tela para filmes nacionais, garantida por decreto da Ancine. Assim, complexos de uma sala devem exibir filmes brasileiros por, pelo menos, 28 dias no ano – e ao menos três títulos diferentes. A cota cresce conforme o tamanho do complexo. Geralmente, assim como aconteceu com “Sangue Azul”, os filmes brasileiros ganham apenas um horário na grade, durante somente uma semana.
Lírio, que chegou a fazer 90 mil com seu primeiro filme, “Baile Perfumado” (1997), defende que é necessário garantir em lei também a limitação de lançamentos de blockbusters americanos. No ano passado, o filme “Jogos Vorazes: A Esperança - Parte 1” estreou em 46% das salas, um recorde no país, causando a ira do cinema independente.
Bernardini
"É um mercado de oportunismo. Se não tem uma lei rígida, com punição, então nasceu para não ser aplicada"
"O blockbuster americano ou uma comédia nacional dessas mais acessíveis ficam disputando esse espaço. Estamos jogando no ralo toda uma produção. Acaba que o circuito desses filmes são apenas os festivais”, observa o cineasta ao UOL. Bernardini engrossa o coro por uma lei: “É um mercado de oportunismo. Se não tem uma lei rígida, com punição, então nasceu para não ser aplicada".
Em entrevista ao UOL durante lançamento de “Real Beleza”, novo filme de Jorge Furtado, o ator Vladimir Brichta revelou ter receio do desempenho que o filme poderia ter: “O cinema hoje em dia sofre para cacete para não ser atropelado por filmes com apelo imenso, como os heróis da Marvel ou as comédias da Globo Filmes", comentou. "É um pouco frustrante saber que, se você não tem uma divulgação agressiva, daquelas que cria tipo um vírus 'preciso ver esse filme', você pode acabar sendo visto por menos pessoas do que imaginava.”
Procurada pela reportagem, a Ancine disse que só discutirá o assunto no fim do ano, quando o balanço do público for divulgado.
A reverência aos filmes hollywoodianos, o boom de comédias no cinema brasileiro e a baixa na econômica brasileira interferem e colaboram para o enxugamento do público de cinema independente. Mas a abordagem das histórias e a redefinição do público também faz parte do processo.
Lúcia Murat
A legislação deve ser acompanhada com formação educacional. É evidente que uma parte da chamada classe C entrou no mercado, algumas vezes sem formação cultural, e vai ao cinema para assistir o que ela vê na televisão
Favorável à ideia de uma lei que regulamente o mercado, a diretora e produtora Lucia Murat observa que a formação de público também é essencial. “A legislação deve ser acompanhada com formação educacional. É evidente que uma parte da chamada classe C entrou no mercado, algumas vezes sem formação cultural, e vai ao cinema para assistir o que ela vê na televisão", observa.
Com seu documentário “A Nação que Esperou por Deus” (444 pessoas em quatro semanas de exibição), ela diz que tem investido em um circuito alternativo, propondo debates após as sessões. “Demanda uma disponibilidade sua grande, mas acho que é necessário criar um novo circuito”.
Em São Paulo, a recém-criada SPCine tem desenvolvido políticas voltadas à distribuição e à exibição, contemplando alguns filmes com espaço em cineclubes da capital. Para Lucia, a ação é um bom exemplo para tentar impulsionar essa produção.
Diretora de “Quase Dois Irmãos” (100 mil espectadores em 2005), ela afirma que as novas mídias têm salvado esses filmes do esquecimento. “É óbvio que meu filme novo é mais visto do que o meu primeiro. Hoje há canais, TV a cabo, streaming. Mas não quero abrir mão da experiência cinematográfica. A imersão é essencial, é outra relação com a sala escura”.
* Com informações de Felipe Blumen
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