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Netflix estreia seu 1º filme em Veneza; diretor elogia "democracia da web"

Bruno Ghetti

Colaboração para o UOL, em Veneza (Itália)

03/09/2015 13h06

Veneza pode até ser o mais antigo dos festivais, mas dá provas de que está antenado na modernidade. A mostra italiana contou nesta quarta (2) com a pré-estreia mundial de “Beasts of No Nation”, o primeiro longa-metragem produzido por um serviço de streaming, o Netflix. O diretor do longa, Cary Fukunaga (da série "True Detective"), apareceu no Lido para promover seu filme e, por tabela, defender a peculiar estratégia de lançamento, que tem causado polêmica: “Beasts” deverá estrear no mesmo dia (16 de outubro) tanto na internet quanto nas salas de cinema. 

“Hoje em dia é muito difícil encontrar lugares para ter seu filme exibido, ainda mais por um tempo satisfatório. Fazer as pessoas irem ao cinema já é algo fora de controle. Mas acho que vivemos em uma interessante época democrática”, disse Fukunaga, durante conversa com jornalistas, fazendo um discreto afago na produtora de seu longa.

Desde que o Netflix revelou que lançará o filme simultaneamente na web e no cinema, alguns dos principais grupos exibidores de filmes, como o Cinemark, anunciaram de bate-pronto que se recusariam a projetar o longa em suas salas. Eles alegam um (até certo ponto compreensível) receio de que o público, tendo a possibilidade de ver o filme no conforto do lar, não se dará ao trabalho de ir ao cinema para assisti-lo –e, muito menos, de pagar pelo ingresso por um produto que já está no pacote mensal do seu serviço de streaming.

Ou seja: os grupos que anunciaram boicote a “Beasts” sabem que a estratégia inovadora de lançamento deverá significar baixa bilheteria. Eles defendem que deve haver uma janela de no mínimo 90 dias entre a estreia no cinema e a possibilidade de o espectador ver o filme em sua casa.

Alheia à controvérsia, Veneza teve a ousadia de não somente projetar a produção do Netflix como também de incluí-la na disputa pelo Leão de Ouro, algo inédito para um festival de tão grande porte. “Internet e salas não devem ser concorrentes: devem trabalhar juntas a partir de agora”, disse na quarta o diretor do festival, Alberto Barbera, tentando minimizar as polêmicas.

Aposta em conteúdo próprio

O filme surge como a primeira aposta do Netflix rumo a estender suas atividades à produção de longas, um ano depois de uma tentativa frustrada de fazer o mesmo com outra obra. Em 2014, o serviço de streaming anunciou que produziria uma continuação de “O Tigre e o Dragão”, com lançamento concomitante em telas grandes e pequenas, mas a reação dos grandes exibidores foi tão imediata e intimidante que a ideia foi abortada.

Neste ano, porém, a empresa mostrou que o assunto não estava encerrado por ali e resolveu apostar sem voltar atrás em “Beasts” e mais outros projetos. Em recente entrevista à revista “Variety”, o diretor de conteúdo da empresa, Ted Sarandos, revelou que o Netflix tem “meia dúzia de filmes neste momento, em fases de produção distintas”. Elas incluem desde uma comédia estrelada por Adam Sandler a um documentário sobre Keith Richards, passando por um drama com Agelina Jolie na direção.

O Netflix não parece mais temer boicotes ou ameaças e a tendência é que, cada vez mais, a empresa invista em conteúdo exclusivo. Nos EUA, o grupo já fechou acordo com exibidores nanicos para o lançamento de “Beasts” em poucas salas, mas em 19 praças, inclusive Los Angeles e Nova York, tornando o longa elegível para o Oscar do ano que vem.

Na entrevista coletiva, Fukunaga foi questionado se não se sente frustrado em, ao ter seu filme disponível em vídeo sob demanda, ser incapaz de controlar o público, que pode pausar quando quiser ou assistir enquanto surfa em outros sites da web. “Nunca vou ser capaz de controlar isso”, respondeu ele, com certa resignação na voz, mas uma visível satisfação no rosto.

O diretor parece feliz em ter seu filme bancado pelo Netflix, que, segundo ele, não fez nenhuma interferência no conteúdo. “Quando eles chegaram, a parte editorial do filme já estava selada, então não houve atuação do Netflix neste respeito.”

Filme de impacto

“Beasts of No Nation” é certamente uma obra interessante no quesito “estratégia de lançamento”, mas talvez seja mais ainda em termos estéticos e temáticos. É um vigoroso trabalho de direção de Fukunaga, que começa com uma história feliz e algo lúdica, de um garoto que brinca com os amigos em um vilarejo da África ocidental (de nação não especificada), apesar de o país estar em guerra civil. Mas um dia o conflito se intensifica, e o exército que reprime grupos rebeldes mata o pai do rapaz, que foge para a selva, onde é capturado por guerrilheiros. O rapaz é, então, aliciado pelo líder (Idris Elba) como soldado, sendo submetido a um rigoroso e extenuante processo de lavagem cerebral, de forma a defender a causa da guerrilha, pegando em armas e cometendo as maiores atrocidades em nome dos interesses do grupo.

O longa é de uma violência terrível, apresentada em muitas cenas de forma gráfica. Quando o garoto mata sua primeira vítima, o sangue respinga na câmera. Há ainda cenas explícitas de espancamento e estupro. Durante as filmagens, porém, o clima era descontraído, segundo Fukunaga. “Em muitas cenas de violência, a dificuldade era a de conter o riso dos atores [a maior parte não-profissionais], porque era tudo encenado, não havia violência alguma, e era necessário fingir que havia. De fato, quando você assiste ao filme, ele é violento, mas o clima na hora de filmar era bem distinto”.

O filme foi calorosamente aplaudido e não há dúvidas de que causará grande impacto mesmo se visto em uma tela de computador, ainda que a experiência seja incompleta: o espectador não vai obter o mesmo tipo de estímulo sensorial que terão os que assistirem na tela grande. Mas, pela primeira vez, o público terá total liberdade de escolha sobre como ver o filme.