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"Documentário sobre 'Cidade de Deus' não é entretenimento", diz diretor

Leonardo Rodrigues

Do UOL, em São Paulo

06/11/2015 16h52

O antes e depois do elenco de "Cidade de Deus" (2002), um dos filmes mais emblemáticos desde a retomada do cinema nacional, e que revelou nomes como Alice Braga e Seu Jorge, acaba de chegar aos cinemas por meio de um documentário.

Dirigido por Cavi Borges e Luciano Vidigal, em parceria com o Canal Brasil, "Cidade de Deus - 10 Anos Depois" resgata relatos de sucesso, ostracismo e de tragédias vividas pelos atores --apenas metade dos cerca de 30 artistas continua atuando. São histórias de vida calejadas e reais, que naturalmente despertam o interesse, mas que, por pouco, não puderam ser lançadas.

Por motivos de edição (foram 200 horas de filmagens) e dificuldades no financiamento da distribuição, o longa só pôde ser lançado comercialmente em 2015, depois de dois anos rodando por mais de 60 festivais. Para Borges, no entanto, o atraso não interfere na atualidade da narrativa.

"É um filme que se propõe à discussão, para a pessoa sair do cinema e pensar. Não é entretenimento. O filme fala do racismo, das dificuldades de viver da arte do Brasil. Problemas que continuam", diz Borges. "Lançar ficção no cinema já é difícil. Documentário, mais ainda. Até achamos que não fôssemos mais lançar no cinema, que ele iria dos festivais para as as TVs."

A garantia do lançamento no circuito comercial só veio há um ano, após o projeto vencer um edital de distribuição do Fundo Setorial do Audiovisual no valor de R$ 200 mil. No ano que vem, o documentário começará a ser exibido em 110 países via iTunes.

"O Cavi abriu uma distribuidora pensando em filmes independentes brasileiros. Aí a gente conseguiu reunir útil ao agradável, com a distribuidora e vencendo o edital. Não é fácil fazer cinema no Brasil", afirma Luciano Vidigal, que trabalhou como estagiário de produção do elenco do filme original de Fernando Meirelles.

Veja o trailer de "Cidade de Deus - 10 Anos Depois"

UOL Cinema

Destinos díspares

Luciano, que mora na favela do Vidigal, acompanhou de perto as histórias de sucesso e superação mostradas no filme, como a de Eduardo BR, que antes de "Cidade de Deus" chegou a ser traficante e hoje é cineasta, dono da própria produtora no Rio.

Mas não faltam destinos trágicos. O ator e músico Jonas Michel, por exemplo, fez parte da turma do bandido Zé Pequeno e morreu esfaqueado em 2006 pelo ex-marido da namorada. Já Jefechander Suplino, o bandido Alicate do Trio Ternura, desapareceu em 2011 após se envolver com narcotráfico, e Rubens Sabino Silva, o Neguinho, encontrado em abril deste ano vivendo na cracolândia, em São Paulo.

"Eu acompanhei todos eles de perto e vejo três grupos muito claros. Um é o da galera que é muito talentosa, que corre muito atrás, mas encontra dificuldades em um mercado audiovisual muito preconceituoso e racista. Há também os que tiveram histórias trágicas, infelizmente. E tem a grande minoria, que obteve sucesso", afirma Vidigal.

Mesmo para alguns, que não seguiram a profissão, a experiência [da ONG Cinema Nosso] reforçou a autoestima. Mas, infelizmente, nem todos conseguiram escapar do destino dos seus personagens
Fernando Meirelles, sobre o destino do elenco de "Cidade de Deus"

"A gente chegou a conclusão, vendo o filme, que os atores que têm uma estrutura familiar ou uma pessoa para botar o pé deles no chão, para dizer que eles não eram os fodões e que tinham que estudar para aproveitar as portas que se abriram com o filme, conseguiram se dar bem", entende Borges.

O cineasta Fernando Meirelles, que preferiu não participar do documentário, sob pena de "ser visto com chapa branca", pensa parecido. "Na ONG Nós do Morro, o Guti Fraga [criador do grupo] não passava apenas conhecimento relativo à profissão de ator, mas também dava uma bela estrutura mental que ajudou muitos a manterem o foco", contou ele ao UOL.

"Depois do filme foi criada ainda uma ONG chamada Cinema Nosso, que até hoje é tocada por ex-atores do longa. Manter uma ligação com este grupo foi também muito importante e estruturante para muitos garotos. Mesmo para alguns, que não seguiram a profissão, a experiência [do filme] reforçou a autoestima. Mas, infelizmente, nem todos conseguiram escapar do destino dos seus personagens."