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Premiado sob vaias, filme encara machismo na América Latina com relação gay

Tiago Dias

Do UOL, em São Paulo

07/11/2015 06h00

“Desde Allá” é o filme latino do momento -- para o bem e para o mal. Estreia do venezuelano Lorenzo Vigas, o longa-metragem foi responsável por levar a Venezuela pela primeira vez ao Festival de Veneza deste ano. Acabou saindo do evento com o prêmio máximo, o cobiçado Leão de Ouro. Os louros, no entanto, não vieram sem polêmica. Da sala de imprensa, o anúncio foi recebido com vaias -- seria um filme ruim? Ou se tratava de uma reação apaixonada ao ver um latino ofuscar produções europeias (o júri era presidido pelo mexicano Alfonso Cuarón, de "Gravidade")?

Em sua passagem pela Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, nas últimas semanas, o longa também não saiu incólume. A reportagem do UOL presenciou o público reclamando em alto e bom som ao final da projeção : “Como isso ganhou Veneza?”. “Eu realmente não sei por que rechaçaram. Quando você faz uma obra muito honesta, consegue criar uma conexão com algumas pessoas, mas não com outras -- por medo inconsciente talvez”, observa Vigas.

O diretor conta que a Venezuela está em festa com o filme, que só estreia em março. “Parece final de campeonato”, compara. Mas se "Desde Allá" já vem colecionando opiniões tão contraditórias, ele sabe que a polêmica também chegará lá por conta da relação homossexual entre os protagonistas.

A história acompanha Armando (o veterano ator chileno Alfredo Castro), um cinquentão que atrai jovens para sua casa oferecendo dinheiro. Ele não os toca, apenas se masturba com certa distância. Tudo muda quando ele alicia Elder (o estreante Luís Silva), líder de uma gangue de rua da periferia de Caracas. O encontro entre os dois é violento, o que não diminui sua fascinação pelo belo adolescente.

“Trata-se de um encontro de dois machos alfa. Na América Latina é muito importante ser macho alfa. Não só na Venezuela, mas também no México, no Brasil”, explica Vigas, em entrevista ao UOL. “Os personagens vivem num continente muito machista, onde há muita homofobia. Era uma forma de criticar e enfrentar esse tema”.

Carências e violência

Vigas, no entanto, é categórico: Não se trata de um filme gay. "É mais sobre carências emocionais. Ao invés de Armando, poderia ser uma senhora de 50 ou 60 anos que nunca teve amor, cuidado e carinho”. A ausência da figura paterna é algo que une ainda mais os personagens -- o que pode explicar a reação polarizada dos espectadores, que esperavam uma história sobre a relação amorosa. A falta do pai já havia sido discutido em seu curta-metragem, “Los Elefantes Nunca Olvidan”, e voltará a ser tema no próximo longa, “La Caja”.

"Desde Allá" revela ainda um contexto político. Entre troca de olhares e cenas tensas de perseguição, a história expõe a desigualdade social de um país dividido. “Existe uma falta de comunicação entre as classes. O filme se passa na Venezuela, num contexto onde não há essa comunicação entre as classes, o governo não dialoga com a população, o país está dividido. O personagem do Armando funciona metaforicamente - não pensei nisso quando escrevi, mas o filme está muito ligado à situação que a Venezuela e muitos países latino-americanos vivem hoje”.

Situação esta que colocou a produção em estado de alerta durante as filmagens em Caracas. “É uma cidade muito boa para filmar, mas a violência está em todas as partes. Estamos em um ponto que praticamente não se pode andar por Caracas. Você sai oito horas da noite e parece uma cidade fantasma”, afirma.

É dessa região que Luís Silva surgiu. No papel do adolescente que aprende a viver na rua, o ator não tinha nenhuma experiência anterior e foi escolhido sem fazer teste. “Eu vi uma foto dele e senti uma grande humanidade ali. Nunca fiz um teste de câmera, nada. O que fiz foi acompanhá-lo, comer algo, fomos ao cinema”.

Com uma história sobre ausência, e que celebra tantas “primeiras vezes”, Vigas diz que tem tratado Luís como um filho. “Tive muita sorte, pois creio que ele vai se tornar uma grande estrela”.