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A real "garota dinamarquesa": Como uma pintora foi pioneira na luta trans

Pintor famosos, Einar Wegener deixou a arte quando se reconheceu mulher sob o nome de Lili Elbe - The Wellcome Library/Divulgação
Pintor famosos, Einar Wegener deixou a arte quando se reconheceu mulher sob o nome de Lili Elbe Imagem: The Wellcome Library/Divulgação

Tiago Dias

Do UOL, em São Paulo

11/02/2016 11h00

Na década de 1910, as ilustrações de Gerda Wegener eram a sensação em Copenhague, graças à modelo fashion que exalava sensualidade em seus retratos estilizados. Todos queriam saber: quem era essa garota? “É Lili Elbe, irmã do meu marido”, respondia Gerda, guardando para si a verdadeira identidade da sua musa: seu próprio marido.

Assim como sua mulher, Lili Elbe foi uma bem-sucedida pintora, mas entrou mesmo para a história por ser a primeira pessoa submetida a uma cirurgia de redesignação sexual (da qual se tem notícia). Sua luta ficou escondida durante muito tempo e é resgatada agora, como grande orgulho do movimento trans, no filme “A Garota Dinamarquesa” que estreia quinta-feira (11).

Mas apenas parte dessa extraordinária vida encontra espaço no filme dirigido pelo oscarizado Tom Hooper (“O Discurso do Rei” e “Os Miseráveis”), e que pode dar a Eddie Redmayne o segundo Oscar consecutivo, após seu papel de Stephen Hawking em “A Teoria de Tudo”.

Adaptado do livro de grande sucesso do autor David Ebershoff, “A Garota Dinamarquesa” é uma ficção baseada na história do casal de pintores. Na vida real, sua saga foi mais intensa.

Nascida na Dinamarca com o nome de registro de Mogens Einar Wegener, ela identificou-se a maior parte da sua vida como do gênero masculino. Pintora de grande sucesso, ela é até hoje representada no Museu de Arte de Vejle, lugar onde nasceu e inspirou muitos de seus quadros de paisagens, sempre insólitas e nubladas, em claro contraste com o colorido exuberante dos retratos de sua mulher.

Bastou um dia para que Einar se despertasse. Gerda finalizava um quadro da atriz Anna Larssen vestida de bailarina, mas naquela tarde, a modelo não apareceu. Gerda então pediu ao marido para colocar o vestido com saia plissada, os sapatos de salto e as meias. Bastaria posar por um momento.

"Lili Elbe" por Gerda Gottlieb, sua mulher na época - Divulgação - Divulgação
"Lili Elbe" por Gerda Gottlieb, sua mulher na época
Imagem: Divulgação
Einar hesitou, mas cedeu. Escreveria depois sobre a experiência que mudara sua vida. "Eu não posso negar, por estranho que possa parecer, de que eu gostava de mim neste disfarce", escreveu Einar em seus diários, publicado após sua morte com o título “Man Into Woman” [sem tradução no Brasil]. "Eu gostei da sensação suave daquelas roupas femininas. Eu me senti em casa com elas, desde o primeiro momento."

A partir daí, passou a se vestir esporadicamente, ao lado da mulher, durante viagens à França e à Itália, e servindo de modelo para os quadros e ilustrações que Gerda fazia para revistas como “Vogue” e “La Vie Parisienne”. Acolheu a sugestão de uma amiga para um codinome, Lili, e escolheu o nome de um rio que passava pela Alemanha, Elbe, como sobrenome.

Se a questão da transsexualidade é mal assimilada por muitos ainda hoje, é difícil imaginar reação mais adversa do que naquela época. A sociedade dinamarquesa havia descoberto sua verdadeira identidade e a imprensa não dava descanso. O casal então preferiu se mudar, encontrando ambiente mais favorável na noite festeira de Paris.

Uma das coisas que Lili gostava de fazer era desaparecer muitas vezes entre os foliões durante o Carnaval. Gerda, em paralelo, mantinha aventuras com outras mulheres. A euforia de viver na pele de Lili lhe tirava a vontade de voltar às pinturas. Ela tinha certeza que Einar já não encontraria mais espaço. “Minha criatividade não está no meu cérebro, nos meus olhos, em minhas mãos, mas sim no meu coração, no meu sangue”, escreveu em suas memórias. “O desejo fervoroso de minha vida de mulher é tornar-se a mãe de uma criança”. Em 1930, seu casamento foi anulado pela corte dinamarquesa.

Na mesma época, vendeu suas pinturas e foi para a Alemanha tentar uma arriscada e experimental cirurgia de redesignação sexual. Uma série de cinco operações foi realizada em um período de dois anos. A primeira, sob a supervisão do sexólogo Magnus Hirschfeld, em Berlim, removeu seus testículos. O resto das cirurgias foi realizado pelo Dr. Warnekros na Clínica Municipal da Mulher de Dresden, para remoção do pênis e reconstrução vaginal. A cada cirurgia, a certeza aumentava, junto com as complicações cada vez mais graves.

Em suas memórias, em setembro de 1931, ela escreve: “Sonhei noite passada com minha mãe. Ela me pegou pelos braços e me chamou de Lili”. No dia 13 daquele mês, Elbe morreu dias antes de completar 50 anos, sem saber o quanto inspiraria a luta de tantos transsexuais em busca de sua essência.