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Novo cinema indígena tem rap, protagonismo feminino e "revolta no olhar"

Ailton Krenak, idealizador da mostra Aldeia SP - Paula Nogueira - Paula Nogueira
Ailton Krenak, idealizador da mostra Aldeia SP
Imagem: Paula Nogueira

Carlos Minuano

Colaboração para o UOL

12/10/2016 06h00

Conhecido como música de protesto contra as mazelas da periferia, o rap chegou às aldeias indígenas e, por ali, chegou também às telonas. “Agora é guerra”, dispara o combativo hip-hop “Tupã” no final do longa “Martírio”, de Vincent Carelli, que abriu a segunda edição da Aldeia SP, mostra de cinema indígena que aconteceu durante o último fim de semana no Centro Cultural São Paulo.

Tendência entre indígenas mais jovens, cinco videoclipes de grupos de diferentes aldeias são destaques entre os filmes. Ali, a sonoridade das quebradas ganhou uma estética diferente, com cocares e maracás, mas manteve o espírito de contestação, com letras que denunciam violência e injustiças, feitas por grupos formados por jovens, como os Guarani-Kaiowá do Brô MC's, do Mato Grosso do Sul.

Revolta no olhar

A mostra Aldeia SP, segundo seu idealizador, o indígena e ativista Ailton Krenak, revela a apropriação pelos povos indígenas, plurais e diversos na sua visão de mundo, das muitas linguagens possíveis. Segundo ele, a seleção de filmes, que reúne curtas, médias e longas-metragens de aldeias de todas as regiões do país tem em comum uma “revolta no olhar”.

Para Krenak, o cinema (e a arte) indígena é uma ferramenta de afirmação das lutas desses povos. “Estamos na contracorrente, lutamos contra uma espécie de conspiração do Estado brasileiro”, diz. Um dos momentos mais marcantes do filme “Martírio” --que registra a expulsão dos Guarani-Kaiowá de suas terras no Mato Grosso do Sul e volta ao nascimento dos movimentos de resistência indígena, na década de 1980 --é a “performance indígena” de Krenak, na Constituinte, em 1988, quando ele defendeu uma correção de rumos no país sobre direitos fundamentais enquanto pintava o rosto com jenipapo, segundo ele, para ser ouvido. “Se eu não fizesse aquilo, não teria a mesma força. Quando o diálogo encerra, a arte tem esse apelo”.

“Estamos hoje entre implementar alguns direitos e resistir para que eles não sejam derrubados pelas tantas PECs (propostas de emendas constitucionais) no Congresso e ações dos três poderes da república que estão travados com a gente”, prossegue. Mas ele não vê novidade nas muitas dificuldades que enfrentam. “Tem 500 anos que levamos golpes, estamos calejados, historicamente temos que resistir. Belo Monte, por exemplo, foi feita num governo supostamente engajado nessa questão dos direitos indígenas, e foram milhares de índios retirados das margens do rio Xingu e jogados em uma situação de miséria. Aliás, lembra muito o que é mostrado no novo filme de Carelli”.

Protagonismo feminino

Krenak destaca também a presença feminina atrás das câmeras nas produções exibidas na mostra. “É muito revelador, e nem todas puderam vir”. Segundo ele, elas são pelo menos dois terços dos cineastas presentes no evento. “No total, dez cineastas mulheres estão presentes na mostra em São Paulo”, afirma Rodrigo Arajeju, um dos curadores da Aldeia SP.

A jovem tukana Larissa Ye’Padiho Mota Duarte, 22, veio pela primeira vez a São Paulo para mostrar seu primeiro filme, o autobiográfico “Wehsé Darasé - Trabalho da Roça”, que mostra o método tradicional de trabalho com a terra dos povos do Rio Negro, no noroeste amazônico, reconhecido como patrimônio histórico pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional).

Ela diz que não sentiu dificuldades para produzir o filme. “Já conhecia um pouco do uso de novas tecnologias”, conta. As turbulências da longa viagem de avião de São Gabriel da Cachoeira (AM), onde vive, até a capital paulista também não assustaram a jovem. “Sou corajosa”, diz ela, que planeja para seu próximo filme registrar lendas e mitos de seu povo.

Nova geração

Para o ex-ministro da Cultura, Juca Ferreira, homenageado na noite de abertura da mostra de cinema, a nova geração de artistas das aldeias está ampliando sua presença e visibilidade, e a qualidade dos trabalhos vem ganhando reconhecimento, abrindo novos espaços para a cultura indígena.

E é na música que indígenas chamam mais a atenção pela apropriação de uma enorme diversidade de sonoridades e ritmos. "Já tem índios tocando rap, lambada, axé, reggae, rock, e até funk", comenta Ferreira.

Entretanto, o tamanho da mostra em São Paulo, com 53 produções, parece indicar que o cinema indígena também está avançando. A primeira edição, em 2014, teve 36 filmes. Ferreira crê que, mais à frente, essa nova geração pode caminhar para o desenvolvimento de algo como uma indústria de entretenimento indígena. “Eu acredito que logo mais uma dessas produções venha ser exibida no circuito comercial”.

Para o diretor Vincent Carelli, os espaços que as novas gerações de indígenas estão ocupando, que incluem outras linguagens como o teatro e a literatura, mostram uma busca por novos meios de interação com a sociedade, mas ele não vê nisso a criação de uma indústria. “É tudo na base de muita luta, sem subvenção, fruto de uma necessidade de expressão e de ruptura com a invisibilidade”.

O diretor franco-brasileiro, radicado em Pernambuco, e que também é antropólogo, indigenista e documentarista, viu seu filme mais uma vez ser aplaudido de pé após a exibição na mostra Aldeia SP. Para ele, o motivo da reação é simples de entender. “A tragédia do povo Guarani-Kaiowá é chocante mesmo”, observa.

No festival de Brasília, em setembro, o longa causou forte comoção não apenas por expor de maneira contundente um massacre que ocorre há décadas, mas por evidenciar sua relação com a chamada bancada ruralista no Congresso. “Mostra um genocídio, em pleno século 21, na forma de pistolagem, com crimes bárbaros com apoio da polícia, da justiça e de políticos”.

Apesar do crescimento no número de filmes exibidos, e o ar de renovação que exala da nova safra de obras indígenas, a mostra Aldeia SP se tornou bienal a partir da atual edição por falta de incentivos. E, ainda assim, o organizador teme pela continuidade do evento. Segundo Arajeju, vai depender de como a nova prefeitura irá lidar com a SPCine, agência municipal de fomento ao cinema, que apoia a realização do festival. “Se deixar de focar a política de Estado para atender a agenda de governo, pode cair no colo da Globo, como ocorreu com a Rio Filmes”, projeta.