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Refugiado que chegou ao Brasil em porão de navio revive história em filme

Mariane Zendron

Do UOL, em São Paulo

28/10/2016 12h25

Em um prédio ocupado por sem-teto no Centro de São Paulo, um professor de teatro pede um tema para os alunos. Mounir Ismael, 31 anos, levanta a mão: "Roda de avião". O professor não entende e pede para ele explicar melhor: "Quando eu tinha 12 anos, tentei fugir da África na roda de um avião. Fui capturado, mas quatro anos depois consegui fugir no porão de um navio. Achava que estava indo para os Estados Unidos, mas desembarquei no Brasil".

A história tão absurda quanto real está em "Era o Hotel Cambridge", novo longa de Eliane Caffé ("Narradores de Javé"), exibido na Mostra de São Paulo. Essa é a única fala dele no filme, mas uma das participações mais marcantes. A diretora quis histórias reais para, a partir daí, criar um filme de ficção que retrata a convivência de refugiados e brasileiros onde antes funcionava o Hotel Cambridge.

Pouco antes da primeira exibição do longa na Mostra, na terça-feira (25), Mounir contou à reportagem que o episódio da roda de avião é só parte da sua história, que poderia ganhar um filme próprio. "Meu país vive em guerra desde a década de 1950. Desde criança eu ouvia armas, então virou meu som favorito. Eu era criança demais e não sabia do perigo. Carregava foguetes e armas para os rebeldes. Quando descobri que tinha um futuro pela frente, decidi fugir".

A ideia de fugir na roda do avião surgiu  quando Mounir vendia balas no aeroporto de Camarões. "Via aquelas crianças todas entrando nos aviões, quis fazer igual, mas quando consegui me esconder na roda, os seguranças me viram pela câmera". Três anos depois, ele conseguiu um espaço entre sacas de acúçar no porão de um navio. 

Ao desembarcar no porto de Santos, litoral de São Paulo, Mounir descobriu que estava na terra de Pelé. Não era os Estados Unidos, mas pareceu bom. "Estou aqui há 16 anos, mais tempo que vivi no meu país. Já me adaptei à cultura e gosto daqui". Passou por ocupações, mas não ficou muito tempo em uma. O mesmo aconteceu com albergues. "Tinha que entrar às 18h e sair às 6h mesmo que estivesse chovendo muito. Preferi viver na rua". 

Fez bicos de todo tipo --um deles era ajudar outros refugiados no português para a obtenção de documento--, até conseguir fazer cursos de atuação. "Eu sempre quis ser ator porque, para querer contar a minha história, tem que atuar". Depois de participar da série "Destino SP", da HBO, foi chamado para o filme de Caffé. 

Liderança na luta por moradia 

Além de Mounir, há outros poucos atores profissionais no filme, como José Dumont, Suely Franco e Paulo Américo. A maioria do elenco é formada por refugiados e brasileiros diretamente ligados à ocupação. "A primeira ideia era fazer um filme sobre os refugiados, mas a gente não queria um drama individual. Decidimos retratar o momento em que eles se encontram com os brasileiros e, com isso, vimos que muitos estavam em ocupações por falta de política publica", disse Caffé, que logo passou a palavra aos atores. Ela deixa claro que prefere que eles falem. Afinal, o protagonismo na atuação e na luta é deles. 

Um dos papéis de destaque ficou para Carmen Silva, que no filme e na vida real é uma das líderes de movimentos por moradia em São Paulo. Ela enfrenta não só as autoridades como ainda apazigua desentendimentos entre refugiados e sem-teto brasileiros. Em uma cena do filme, alguns brasileiros, encenando a vida real, dizem que os refugiados estão tomando seus espaços. "Há o trabalho de fazê-los entender que somos todos refugiados, mesmo no nosso país, já que não temos direito à moradia", diz Carmen.

A união da equipe do filme com o movimento começou no filme, mas não se encerrou nele. "Chegamos lá para fazer um filme, mas fomos criando um vínculo que nos aproximou do movimento". Uma das medidas foi chamar alunos de arquitetura da Escola da Cidade para reformar as áreas comuns da ocupação, que serviram tanto para o filme como agora para o dia a dia dos moradores. 

E o trabalho nesses espaços continua com ações como amenizar o choque cultural entre brasileiros e a conscientização entre os refugiados para que não usem a ocupação como passagem, mas para que fiquem e lutem por moradia permanente ao lado dos sem-teto. "A gente vê que há muito trabalho a fazer, por isso a gente não sai de lá", disse a diretora.

Próxima sessão de "Era o Hotel Cambridge" na 40ª Mostra de SP

Quando: 1/11
Onde: Espaço Itaú de Cinema - Frei Caneca 3
Horário: 18:10