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Crítica: "'Mãe!' é uma profusão de cenas que não levam a nada"

Jennifer Lawrence em cena do filme Mãe!  - Divulgação
Jennifer Lawrence em cena do filme Mãe! Imagem: Divulgação

Bruno Ghetti

Colaboração para o UOL

21/09/2017 11h38

“Mãe!” tem uma mensagem bem mais simples que se imagina. O mundo caminha para o caos, nos diz o diretor Darren Aronofsky. Qualquer pessoa minimamente antenada no que tem acontecido no planeta sabe disso – e concorda. Mas o diretor é um esteta – e com o agravante de ter um pendor para ambiciosos voos filosóficos. Não gosta de facilitar a vida do público, então, para transmitir sua mensagem, pavimentou um caminho peculiarmente rebuscado, que mescla cinema de gênero (entre o suspense e o horror) com diversas referências bíblicas.

A trama mostra casal que busca isolamento em uma casa no campo, mas que é invadida por visitantes cada vez mais ameaçadores. Quase tudo é alegórico: há uma mansão que parece ter vida, pessoas estranhas que surgem do nada, um talismã que sugere um coração. E há os signos mais abertamente religiosos: falas retiradas da Bíblia, irmãos inimigos à la Caim e Abel, um casal que alude (mas não muito) a Adão e Eva.

Como cinema de gênero, “Mãe!” é um filme falho. Por alguns minutos, é um suspense intrigante, mas Aronofsky logo começa a se preocupar demais com o fundo “metafórico” e abandona a narrativa. O longa se torna uma profusão de cenas que não levam a nada, com Jennifer Lawrence sempre perplexa com o que acontece ao seu redor, limitando-se a tomar satisfações do marido – que sempre sai pela tangente.

Jennifer Lawrence em "Mãe!" - Divulgação - Divulgação
Jennifer Lawrence em cena de "Mãe!"
Imagem: Divulgação
É uma estrutura que atiça a curiosidade, mas lá pela terceiro rodeio de Javier Bardem, o espectador começa a exigir um pouco mais do que o diretor tem a oferecer. Aronofsky tenta compensar com mais alegorias, mas elas sustentam o espetáculo só até certo ponto. Depois, se tornam um peso.

“Mãe!”, no entanto, estranhamente parece exercer um poder estimulante sobre algumas pessoas, que perdem horas (até dias) quebrando a cabeça, tentando “decifrá-lo”. Como Aronofsky consegue essa façanha, mesmo ofertando tão pouco ao público? É um mistério mais enigmático do que qualquer metáfora do filme. Ou nem tanto. Deixemos de lado os fanáticos por Aronofsky (ou por Jennifer Lawrence): esses já achavam “Mãe!” uma obra-prima mesmo antes de começar a ser filmada. Mas os demais admiradores do filme talvez estejam se deixando impressionar demais pelo fato de as alegorias serem bíblicas; por mais descrente que o mundo esteja, referências a um livro sagrado ainda têm um peso simbólico inesperadamente forte – ainda são capazes de tornar um filme um produto mais respeitável e apreciável.

Não é que o uso em filmes de referências conhecidas pelo público seja um procedimento condenável em si. Ao contrário: quando devidamente inseridas (e adaptadas), as citações externas (à Bíblia, a outros filmes ou a o que quer que seja) podem complementar e enriquecer bastante um material. Mas as referências enquanto um fim em si mesmo, sem um prolongamento, alguma problematização, muitas vezes são mero uso de uma criação alheia em benefício próprio.

De caso pensado ou sem intenção "maligna" por trás: o fato é que conseguir a empatia do público apelando para algo pelo que ele já tem previamente afeição ou respeito é uma maneira um tanto fácil – e algo baixa – de ganhar adesão. Aronofsky não inclui as metáforas bíblicas apenas com essa finalidade: ele de fato parece acreditar que, com alusões religiosas, eleva seu filme a um patamar filosófico e espiritual superior. (Já as usou várias outras vezes, em filmes como “Fonte da Vida” e “Noé”.)

A impressão que fica é que ele se limita a salpicar pelo filme as alegorias bíblicas de forma aleatória, sem maior elaboração por trás; o filme parece todo criado com a única finalidade de abarcá-las de alguma maneira. Na forma, “Mãe!” pode até ser um produto com alguma originalidade, com uma concepção autêntica; mas no conteúdo, sobretudo no que usa de bíblico, muitas vezes não passa de uma tentativa de atingir uma dimensão metafísica que o estilo e o roteiro do diretor, sozinhos, não conseguem.

Resta o prazer estético: ao menos isso, aqui e ali, “Mãe!” tem a oferecer. A fotografia granulada em tons alaranjados e a opção pela câmera grudada em Jennifer Lawrence são boas escolhas: dão ao filme um caráter sufocante. E há a presença de atores de grande qualidade – embora isso, por fim, também seja motivo de decepção. Quem diz que Lawrence é a atriz mais talentosa de sua geração não está mentindo; ela já provou várias vezes ser capaz de carregar o mundo (ou, ao menos, filmes bem capengas) sozinha nas costas. Mas em "Mãe!" ela infelizmente não tem muito o que fazer – não tem uma personagem verdadeira, para começar: é pura passividade. É um bocado frustrante ver uma atriz tão cheia de recursos sem ter onde utilizá-los.

O mesmo pode ser dito dos demais atores, sobretudo Michelle Pfeiffer, em excelente forma como a visitante intrometida: seria um deleite se ela não fosse uma simples aparição e tivesse mais material. Soa como um desperdício de talento. O cenário do cinema comercial feito hoje é um tanto deprimente (os filmes de super-herói estão aí para comprovar isso), então é de festejar a existência de cineastas como Darren Aronofsky, que conseguem levar para as massas algum conteúdo em projetos estéticos arrojados.

Mas há um exagero na forma como muitos saudam o seu cinema. Algumas pessoas acreditam na Bíblia; outras, que Aronofsky é Deus. Já a fé do diretor parece ser em sua própria capacidade de fazer um cinema “elevado”. E aí é que está seu maior problema: não deveria se levar tão a sério – assim como parte do público não deveria encarar a devoção a seus filmes como uma religião.