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20 anos depois, "Piratas do Tietê" vai virar filme para "crianças espertas"

Cena do filme A Cidade dos Piratas, baseado nos Piratas do Tietê - Divulgação
Cena do filme A Cidade dos Piratas, baseado nos Piratas do Tietê
Imagem: Divulgação

Carlos Helí de Almeida

Colaboração para o UOL

26/09/2017 04h00

“É um desenho animado para crianças. Mas crianças espertas”. Assim o animador gaúcho Otto Guerra, 61, define o seu projeto de mais longa duração, o filme “A Cidade dos Piratas”. Inspirado em personagens politicamente incorretos criados para as tiras “Piratas do Tietê” pela cartunista Laerte, nos anos 1980, o filme sai do papel depois de mais de duas décadas de tentativas de realização, período em que o plano enfrentou da falta de recursos a reviravoltas nos bastidores. “Até o autor virou mulher, e chegou a renegar os personagens”, brinca Otto.

Os piratas de Laerte estrearam na revista “Chiclete com Banana”, em 1983 e, posteriormente surgiram no jornal “Folha de S.Paulo”. As histórias são protagonizadas por um grupo de saqueadores que percorrem o rio Tietê. O trecho do filme de Otto que o UOL teve acesso mostra os personagens à época das incursões dos bandeirantes pelo interior do país, trucidando animais silvestre e índios. Depois, os desbravadores surgem imortalizados em uma estátua da capital paulista.

Mas a trama de “A Cidade dos Piratas” atravessa o tempo, até os dias de hoje, lançando perspectiva histórica sobre a realidade do país. “Os piratas brotaram das águas escuras do Tietê, mas poderiam navegar por quaisquer dos rios poluídos do nosso país. Eles trazem em seu caráter --ou na falta dele-- um pouco da corrupção dos políticos, da falta de escrúpulos dos empresários capitalistas, da mítica esperança de nosso povo em levar vantagem em tudo”, descreve o texto de apresentação do trecho.

Autor de obras controversas, como “Rocky & Hudson” (1994), inspirado nos cowboys gays do cartunista Adão Iturrusgarai, Otto pretende ter uma cópia pronta de “A Cidade dos Piratas” a tempo de festejar os 40 anos da produtora Otto Desenhos, em meados de 2018. “Temos todas as mil cenas planejadas e cerca de 900 animadas. Estamos fazendo as negociações para a compra de direito de algumas músicas e de trechos de imagem real”, avisa o diretor. Otto faz planos para estrear o novo filme na próxima edição do Festival de Gramado, em agosto do ano que vem.

O capitão dos Piratas do Tietê em cena de A Cidade dos Piratas - Divulgação - Divulgação
O capitão dos Piratas do Tietê em cena de A Cidade dos Piratas
Imagem: Divulgação
Iniciado em 1993, o projeto permaneceu quase duas décadas sem conseguir recursos. Quando estes finalmente chegaram, Laerte havia renegado os personagens que havia criado. “Ela acreditava que os personagens haviam ficado anacrônicos. Mas eu ainda penso que ‘Piratas’ fazem parte perene do nosso imaginário”, entende Otto. “Os piratas são seres divertidos e zombeteiros, dispostos a tudo para se dar bem. Contrastando com a frágil ordem urbana, sua lógica caótica e desordeira coloca em dúvida esse complexo conjunto de regras a que nos submetemos para tornar possível a vida em bandos civilizados”, descreve o animador.

Otto e Laerte chegaram a um acordo depois de negociações. “Alteramos bastante o conteúdo da história original. Foram inúmeros tratamentos realizados por pelo menos cinco roteiristas diferentes”, explica o animador. “Eu me comprometi a fazer mudanças porque havia me apaixonado pelo trabalho mais recente dela. No final das contas, mantivemos o eixo dos ‘Piratas’ e agregamos alter egos ligando personagens com pessoas da vida real. Eu, por exemplo, sou o alter ego do Capitão”.

Em respeito à nova relação da autora com sua criação, Otto incorporou um falso documentário ao filme para explicar essa transformação de Laerte. “Estou escrevendo uma autopornografia, minha vida numa semi-ficção, intitulada ‘Nem Doeu’”, conta o diretor. “Nela, ensino a abandonar os livros de auto-ajuda, ou uma auto-ajuda para fugir de auto-ajuda. Simples. Esse livro tem um personagem ótimo que está em ‘A Cidade dos Piratas’ e vice-versa. No livro chama-se Lotário, no filme é meu nome mesmo”.

Muita coisa mudou na animação brasileira dos anos 1990 para cá --as técnicas evoluíram drasticamente, a produção nacional do gênero aumentou e até mandou um representante nacional ao Oscar, “O Menino e o Mundo” (2016), de Alê Abreu. Mas Otto continua fiel às raízes. “O desenho em 2D, que é onde transito mais, segue sendo manual, apenas não existe mais papel, acetato, mesa de luz, câmeras, moviolas, revelação, etc. É tudo feito em computador. Claro, o fim do analógico e o surgimento do digital melhorou e democratizou a produção da animação no planeta”.

A animação brasileira tem conquistado prêmios --“Uma História de Amor e Fúria” (2015), de Luiz Bolognesi, e “O Menino e o Mundo” venceram duas edições consecutivas do Festival de Annecy--, mas ainda há gargalos no caminho do crescimento da arte no país. “Temos que prestar atenção no quesito distribuição. O investimento em mídia para que o grande público saiba que um filme existe é algo fabuloso. Talvez seja o caso de fazermos o que os franceses criadores do ‘Meu Malvado Favorito’ fizeram, se aliar ao grande irmão do Norte, os EUA e sua cadeia industrial e profícua”, sugere Otto.