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Com direção de estreante, "Cairo 678" conta luta de mulheres egípcias contra abusos

Cena do filme "Cairo 678", de Mohamed Giab - Divulgação
Cena do filme "Cairo 678", de Mohamed Giab Imagem: Divulgação

Neusa Barbosa

do Cineweb, em São Paulo

08/03/2012 11h39Atualizada em 08/03/2012 18h52

País de ponta nas recentes rebeliões da Primavera Árabe, o Egito pouco exibe sua cinematografia no Brasil, muito menos no circuito comercial. Uma saudável exceção chega com o drama "Cairo 678", que revela, ainda que de forma ficcional, parte da realidade urbana e social efervescente daquela nação, assim como um talentoso novo diretor, o estreante em longas Mohamed Diab.

O filme foi premiado nos festivais de Chicago, Dubai e no Asia Screen Awards 2011 e estreia apenas em São Paulo nesta sexta-feira (9). Com uma pegada semidocumental, Diab retrata o caótico trânsito do Cairo para desenvolver a história de três mulheres de diferentes formações e classes sociais que foram vítimas de um problema recorrente: o abuso sexual.

Fayza (Boshra) é uma sacrificada funcionária pública, mãe de dois filhos e cujo marido, o policial Adel (Bassam Samra), desdobra-se em dois empregos para dar conta das despesas familiares.

Diariamente, Fayza toma o ônibus que dá título ao filme, o 678, uma linha precária e disputada em que os passageiros que conseguem embarcar viajam apertadíssimos, em veículos velhos, sujos e perigosos.

Para as mulheres, há outro problema crônico - diariamente, elas são bolinadas por homens, sem que ninguém tome providências. As poucas que ousam protestar são tratadas como histéricas, não raro tendo que completar seu trajeto a pé. É o que costuma fazer Fayza, que não consegue manter a mesma passividade que a maioria.

A ponto de explodir com esses abusos diários, Fayza ouve na televisão o anúncio de um curso de autodefesa feminina conduzido por Seba (Nelly Karim). Rica e culta, Seba não escapou ao abuso, sofrido numa comemoração da vitória da seleção egípcia de futebol, no meio da multidão, sem que o marido (Ahmed El Fishawy) pudesse defendê-la.

Pior ainda para Seba foi a atitude do marido, que se sentiu ferido em seu orgulho masculino, faltando com o apoio a ela, o que motivou a separação do casal. Desde então, Seba, uma designer de joias, vive sozinha e dá palestras para estimular as mulheres a relatar os abusos e se defender. O que, a princípio, atrai poucas interessadas.

Atendente de telemarketing que tenta se tornar comediante stand up, Nelly (Nahed El Sebaï) também foi vítima do ataque de um homem, testemunhado por sua mãe. As duas conseguiram imobilizá-lo e, junto ao noivo de Nelly, Omar (Omar El Saeed), levaram-no à delegacia, para uma inédita denúncia por assédio sexual.

Lá são desestimulados pelo próprio policial e forçados a levar o agressor eles mesmos a outra delegacia, para finalmente registrarem a queixa que sustentará um processo.

Fica muito claro nos três casos que a vergonha pelo ataque recai sobre as vítimas, mais do que sobre os agressores, contribuindo para o silêncio das primeiras. Por querer levar adiante o processo, Nelly passa a ser pressionada pela família do noivo, depois pela sua própria, já que todos concordam que isso pode prejudicar seu futuro casamento.

TRAILER DO FILME "CAIRO 678"

As figuras masculinas do filme simbolizam diversas posturas. Enquanto o noivo de Nelly é francamente solidário com ela, o marido de Fayza sequer imagina o que a mulher passa no ônibus e ainda a pressiona para satisfazê-lo sexualmente. Mas a figura masculina mais peculiar é o investigador Essam (Maged El Kedwany, ator premiado nos festivais de Chicago e Dubai em 2011).

Ao longo da investigação sobre os misteriosos ferimentos infligidos a homens em ônibus - e que estão sendo causados por Fayza -, Essam incorpora de forma às vezes cômica, às vezes autoritária, uma ambiguidade que finalmente representa a própria negligência das autoridades em relação aos abusos machistas e uma das razões de sua impunidade.

Baseado em fatos reais e apesar do tom quase didático, o filme de Diab toma o pulso de uma sociedade em crise em que alguns, como a traumatizada Fayza, finalmente perderam a paciência e tomaram a justiça com as próprias mãos.

Mas se tem o cuidado de não perder de vista a luta cívica de Nelly, que insiste em cobrar da justiça uma atitude diante das agressões diárias às mulheres.

* As opiniões expressas são responsabilidade do Cineweb