Adaptação austera de "Miss Julie" tensiona noções de gênero e classe
Em sua adaptação elegante e sóbria da peça "Miss Julie", que estreia nesta quinta (21), a atriz e cineasta norueguesa Liv Ullmann trabalha com dois polos de tensão: de gênero e de classe. É essa disputa que domina o filme, colocando em cada extremidade uma personagem feminina, e ao centro, quase como um tolo, a masculina.
O roteiro de "Miss Julie" foi adaptado pela própria diretora a partir da peça do sueco August Strindberg, mantendo o universo patriarcal de regras rígidas e pessoas oprimidas do século 19, embora tenha deslocado a ação para a Irlanda da mesma época.
Julie (Jessica Chastain) é uma moça ousada para o seu tempo. Enquanto o pai, um rico aristocrata, está viajando, durante uma noite de solstício, ela tenta seduzir o serviçal da casa, John (Colin Farrell). Acontece que esse é noivo da cozinheira, Kathleen (Samantha Morton), uma carola que não está disposta a perder seu futuro marido.
Durante essa noite, Julie desce até a cozinha onde encontra o casal e começa seu jogo de charme e poder. Ao longe, ouvem-se celebrações das pessoas da vila, afinal, é uma noite de festa. É também nesse momento que Julie mandou a cozinheira dar comida envenenada à sua cadela que está prenha de um vira-latas. O destino da cachorrinha, no entanto, pode ser apenas uma antecipação do que está por vir.
Julie quer John, mas John é ambicioso, e não quer Julie, mas quer o seu dinheiro. Kathleen também quer John, mas não tem armas, a não ser evocar Deus e os pecados que seu noivo estará cometendo ao se deixar seduzir pela filha do patrão. A disputa é entre as duas, e o prêmio (ou seja, a personagem masculina) é o que menos importa, no fundo. Ele é um pêndulo, ora de um lado, ora de outro, sem saber ao certo como agir diante de cada mulher.
Apesar da mudança de cenário, Ullmann se mantém fiel ao original, e joga o peso do filme em seus atores e na câmera austera, que beira a frieza, de seu fotógrafo Mikhail Krichman ("Leviatã"), que parece buscar mais que personagens, a disposição deles no castelo onde vivem, e como interagem com esse espaço. Nesse sentido, "Miss Julie" remete ao teatro —mas o filme está longe de ser um "teatro filmado".
A certa altura, John realiza o sonho de Julie, e o pós-coito, no universo de Strindberg, é um mundo aristocrata em decadência, ou seja, não é algo bom. No filme, a diretora pode jogar outra luz nessa ação: é a transformação de estruturas. O fato de as três personagens mergulharem num inferno pessoal logo após esse momento se torna um indício de que a mudança será inevitável.
E o fato de ser uma mulher a adaptar uma peça que é tão cruel com as mulheres tem muito a dizer. Ullmann parece querer alertar Strindberg de algumas coisas que ele não sabia, ou fingia não saber. Quando as disputas se intensificam, as mulheres são “colocadas em seus devidos lugares” —o que poderia ser uma barreira para o filme ultrapassar, na verdade, se torna um alerta, uma contenção que explicita os limites das estruturas e diz que nem tanta coisa mudou assim desde a estreia da peça e sua adaptação de 2014.
Assista ao trailer legendado de "Miss Julie"
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