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ESTREIA-"Expresso do Amanhã" questiona capacidade de imaginar outros futuros

26/08/2015 16h40

SÃO PAULO (Reuters) - Como os efeitos do aquecimento global estavam tornando a vida na Terra quase impraticável, autoridades de diversos países tentaram uma estratégia química, que não deu certo e congelou todo o globo, tornando a vida praticamente impossível.

Os poucos sobreviventes foram confinados a um mega-trem que circula por esse mundo congelado. Dentro dele, reproduz-se uma espécie de sistema de castas, no qual a esfera da exploração fica nos vagões finais, trabalhando em condições insalubres para que a composição nunca pare, e alimentados apenas com uma barra gelatinosa de proteína.

Esse é o ponto de partida de “Expresso do Amanhã”, primeiro filme em inglês do renomado cineasta sul-coreano Bong Joon Ho ("Mother - A Busca Pela Verdade" e "O Hospedeiro"). Inspirado numa HQ francesa recém-lançada no Brasil – “O Perfuraneve”, de Jacques Lob, Benjamin Legrand and Jean-Marc Rochette –, não se trata apenas de uma ficção científica ou filme de ação, mas também de um longa político.

Como todo filme ou romance sobre uma distopia, “Expresso do Amanhã” tem muito a explicar sobre seu passado e presente, para, assim, apontar um futuro no qual tal ordem seja derrubada – ou, ao menos, haja a tentativa de uma rebelião.

A disposição dos sobreviventes no trem equivale ao seu poder nessa hierarquia. Assim, o empresário, inventor de tudo isso, Wilford (Ed Harris), está na locomotiva, de onde não mantém praticamente nenhum contato com os demais, sempre mediado por Mason (uma irreconhecível Tilda Swinton), a única pessoa, fora os guardas, que tem trânsito irrestrito de uma ponta a outra da composição.

A outra peça do jogo é Curtis (Chris Evans, com um visual bastante diferente daquele clean de seu personagem mais famoso, Capitão América). Uma espécie de herói relutante, será ele quem irá liderar a contragosto o levante, que, de certa forma, foi arquitetado por Gillian (John Hurt).

O estopim é dado quando crianças desse proletariado são tomadas sem qualquer explicação pela guarda, e levadas sabe-se lá para onde e para o quê.

O objetivo, então, será atravessar o trem, chegar até a locomotiva e confrontar Wilford. Como Curtis diz: “Se controlarmos o maquinário, controlamos o mundo”. Essa alegoria pouco sutil é o que está em jogo na narrativa. Quem tem o poder é quem detém as máquinas, não quem as coloca para funcionar.

Nessa jornada até outro extremo, os insurgentes também libertam Namgoong Minsu (Song Kang Ho), homem que projetou todas as fechaduras e sabe como abrir todas as portas.

Nesse momento, a jornada rumo à ponta, Bong faz do seu filme um de ação – muito bem construído com ajuda da fotografia de Hong Kyung Pyo, que valoriza os contrastes entre o exterior do trem, sempre branco e gélido, e o interior, que varia entre o cinza/marrom de uma ponta até o colorido pastel do vagão-escola, onde crianças são doutrinadas por uma professora (Alison Pill), a adorar o espírito corajoso, visionário e empreendedor de Wilford – enfim, a ideologia que mantém o trem sobre os trilhos.

Mas, como dito, há um subtexto político em “Expresso do Amanhã”, e aí que reside o grande diferencial do filme. Fosse apenas sobre a revolta dos oprimidos e sua tentativa de tomar o poder já seria grande coisa, mas Bong – trabalhando com um roteiro escrito por ele e Kelly Masterson, que muda radicalmente a HQ – parece estar mais interessado nos avanços e contenções de uma revolução.

O que está em jogo aqui é aquilo que as pessoas veem e aquilo que não podem ver. A vida do trem enquanto um sistema necessita do escamoteamento do trabalho daqueles que possibilitam seu movimento ininterrupto. Assim, nenhum dos dois extremos é capaz de imaginar uma vida diferente dessa. A diferença entre Curtis e Minsu é que o primeiro quer mudar o trem, e o outro, uma vida fora do trem.

A trajetória de Curtis pode ser o reflexo da jornada de um revolucionário e de seu impulso – mas os dois chegarão a um limite quando se deparam com o dono do trem. De tão introjetada que está a ideologia dentro da qual cresceram – de que não existe vida fora do trem – o rebelde terá forças para mudar isso?

Assim, a distopia de “Expresso do Amanhã” não é bem o reflexo do nosso presente, mas, sim, da nossa incapacidade de ir além do mundo que nos é dado. Nesse sentido, o filme aponta que a grande revolução, na verdade, não é destruir o trem, mas, apenas, sair de dentro dele.

(Por Alysson Oliveira, do Cineweb)

* As opiniões expressas são responsabilidade do Cineweb