UOL Entretenimento Cinema

Ficha completa do filme

Comédia, Drama

A Noite Americana (1976)

Rubens Ewald Filho

Rubens Ewald Filho

Especial para o UOL Cinema
Nota: 5
A Noite Americana

É excelente a edição deste filme clássico, certamente o melhor já feito sobre os bastidores do cinema. Traz, sempre legendado, entrevista com a estrela Bisset (Uma Conversa com Jacqueline Bisset) e com atores franceses que raramente vemos: a cantora Dani, Bernard Menez e Nathalie Baye, que depois da fita virou estrela inclusive em "Prenda-me se for Capaz" (no extra "Conexão França"). Também entrevista antiga com Truffaut (em Cannes e depois nos EUA) e um Making of novo ("Truffaut: um Ponto de Vista", onde a figura mais importante é a biografa do diretor, Annette Insdorf) e outro antigo ("A Piece of Truffaut: A View from Inside", de 1973-74); além de um trailer de cinema.

Único filme de Truffaut (1932-84) premiado com Oscar de Filme Estrangeiro. Também autor de um feito inédito. No ano seguinte, o filme voltou a concorrer ao Oscar (por ter estreado oficialmente em Los Angeles) nas categorias de Roteiro, Direção e Atriz Coadjuvante (Valentina Cortese). O escritor e crítico inglês Graham Greene, interpreta um agente de segurosna fita, usando pseudônimo de Henry Graham.

O filme foi rodado nos estúdios de La Victorine, em Nice, Sul da França, onde foram feitos filmes famosos como "Boulevard do Crime", e aproveita restos dos cenários de "A Louca de Chaillot". Truffaut, que interpreta o diretor na fita, usa um aparelho de surdez (que ele inventou só para tornar mais dramático o personagem, embora aqui digam que ele tivesse problemas de audição também).

Jacqueline Bisset, que é filha de mãe francesa e fluente nessa língua, interpreta uma personagem inspirada em Julie Christie, que trabalhou com Truffaut em "Farenheit 451". A morte do ator principal durante as filmagens foi uma lembrança do falecimento de Françoise Dorléac logo após ter feito "Um Só Pecado" com ele.

Como o script era sempre reescrito, muitas vezes os atores não sabiam se estavam ensaiando ou realmente filmando.

Durante as filmagens, Trufaut declarou: "Como em Beijos Proibidos, o filme começa alegre e termina com um toque amargo". É sempre assim quando se aborda avida em geral, o sentimento de coisas que passam, que terminam. Ri bastante na primeira parte, a descrição, menos na segunda, a narrativa. O filme pode ser um adeus para um determinado tipo de cinema. Jean-Pierre Léaud, que interpreta o galã do filme, é mais conhecido como o alterego de Truffaut desde "Os Incompreendidos", 1959, estrelando uma série de filmes auto-biográficos como o personagem de Antoine Doinel. Já foi definido como o "Oito e Meio de Truffaut", mas em vez de mostrar a crise de um cineasta, ele preferiu contar uma filmagem do primeiro ao último dia.

Escolheu uma filmagem em estúdio por achá-la mais representativa.O que mais atrai em "A Noite Americana", é que o filme demonstra um tremendo amor pelo cinema. Todos são capazes de passar dias sem dormir, sacrificar sua vida particular, em troca de um filme mais bem realizado. É como diz aassistente na frase que ficou famosa: "Eu trocaria um namorado por um filme, mas nunca vice-versa". É essa a doença contagiante e alegre, moral e específica. Em nome de um filme, vale tudo. Truffaut constrói com singeleza um poema de amor a uma arte desacreditada e decadente.

Naturalmente o relato é autobiográfico, uma mistura de todas as histórias que Truffaut viveu ou ouviu falar. Ele coloca o espectador como "voyeur" e cúmplice (revelando todos os pequenos truques das filmagens, até o fogo alimentado a gás). Se a atriz principal não consegue decorar suas falas e parece neurótica e irritante, alguém, de passagem, dará razão: seu filho esta à morte com uma doença incurável.

O filme é um tratado sobre aparências e realidades. Nada é o que parece, o cinema é tão falso e irrelevante, quanto a manteiga natural embalada na pia. Mas atrás de cada frase ou situação, encontra-se a verdade, muitas vezes, do ator que faz o personagem. A fita está repleta de referências, desde Valentina Cortese colando suas deixas pela sala (como costuma fazer Marlon Brando) ou sugerindo dizer apenas números com entonações significativas (como ela mesmo costumava fazer com Fellini). Ou Jacqueline Bisset, que foi descoberta em um filme em que ficava com catapora ("Um Caminho para Dois") ou Jean-Pierre Léaud, que praticamente retrata sua própria personalidade.

O título é uma referência à esta "mentira verdadeira" que é o cinema. "A Noite Americana" é o nome do truque, da lente que transforma as cenas rodadas durante o dia, dando-lhes um efeito de noite por meio de um filtro especial (em inglês, isso é chamado de "Day for Night").

Qualquer um que já esteve envolvido numa filmagem confirmará isso. Fazer cinema não é só criar uma possível obra de arte, mas um trabalho elaborado de relações públicas. Fazer cinema é "quebrar galhos", é descobrir que a atriz está grávida e ter que aparecer de maiô escondendo sua condição, que o ator principal morreu antes de completar suas cenas, que a "script-girl" fugiu com o "stunt-man" e que o produtor está ficando sem dinheiro. Fazer cinema é um ato apaixonado e inexplicável. É convencer um gatinho a entrar na hora certa, ou segurar a mão de uma atriz que saiu de um esgotamento nervoso para depois roubar-lhe uma frase essencial que entrará no roteiro, ou fingir que não reparou no óbvio "filho adotivo" do galã veterano que virou gay.

Mas Truffaut não mostra apenas. Ás vezes tenta explicar e reconhece que as pessoas que estão no "métier" são diferentes. Talvez por que estão sempre sujeitas à crítica, estão sendo julgadas a cada instante e precisam reassegurar-se que são amadas, bonitas e desejadas. E as tiradas do filme sabem ser francamente sábias: por exemplo "Quando uma mulher diz que é experimentada isso significa que já teve muitos amantes". O filme dentro do filme que está sendo rodado: "Eu vos apresento Pamela" é propositalmente simples. Truffaut preferiu não dificultar a compreensão do espectador. Ao interpretar ele mesmo, o diretor optou por um tipo sem vida particular. Seu único romance é com o próprio filme. Mas mesmo quando dorme, uma obsessão o persegue, é uma imagem que vai se compondo aos poucos, um menino andando pelas ruas vazias de madrugada invadindo um cinema para roubar as fotos de cena de "Cidadão Kane".

Mais que uma metáfora feliz do amor ao cinema, o filme é um retrato do próprio Truffaut, um ex-delinqüente juvenil, salvo da vida criminosa para se tornar "rato de Cinemateca". "A Noite Americana" é sua declaração de amor ao Cinema e seu melhor filme.

Compartilhe:

    Siga UOL Cinema

    Sites e Revistas

    Arquivo