UOL CinemaUOL Cinema
UOL BUSCA
65o. Festival de Veneza - 2008

28/07/2005 - 22h53
"Sin City" faz o cinema tratar os quadrinhos como arte
THIAGO STIVALETTI
colaboração para o UOL

Há pelo menos cinco anos Hollywood se dedica a produzir de forma sistemática superproduções inspiradas nos personagens das histórias em quadrinhos. Justo e natural que enfim um diretor se inspirasse não nos personagens, mas no próprio formato HQ.

"Sin City" respira quadrinhos em todos os seus componentes: nos enquadramentos inusitados, na fotografia preto-e-branco com poucas e fortes intervenções de cor, na narração "em off" permanente - o que pode cansar alguns. Mesmo a trilha sonora tomada por um saxofone discreto é bem o que poderíamos imaginar para o universo de Frank Miller.

Difícil criar um universo próprio no cinema, como poucos grandes autores o fazem hoje. Mas o universo de "Sin City" já estava todo lá nos quadrinhos - e não é coisa para adolescente em puberdade. É um universo de heróis solitários em meio a um mundo perdido e corrompido, heróis que morrem e ressuscitam várias vezes como num milagre, mulheres fortes e marginais, poderosos que se aproveitam de um mundo sem lei para realizar desejos sexuais distorcidos.

É uma visão expressionista, mas que bebe na fonte de uma América puritana, dividida entre Deus e o pecado. Contradição bem resumida em uma rápida cena: Kevin, um assassino misteriosamente poderoso vivido por Elijah Wood, lê a Bíblia enquanto vigia o terreno onde ocorrem vários crimes.

O roteiro mistura três histórias da série "Sin City". A costura delas é influência direta do pai do projeto, Quentin Tarantino, que aparece nos créditos como diretor convidado e assina uma única seqüência - aquela em que Dwight (Clive Owen), dirigindo o seu carro, tem a alucinação de que o cadáver de Jackie Boy (Benicio Del Toro), ao seu lado no banco dos passageiros, está vivo e falando com ele.

De Tarantino vem também o saudável hábito de escalar "múmias" já esquecidas pelo cinemão. Mickey Rourke, mais até do que John Travolta em "Pulp Fiction", é a escolha perfeita para o truculento Marv, um homem com traços de lobo que quer vingar a morte de uma prostituta que morreu assassinada na cama ao seu lado sem que ele se desse conta. E Rutger Hauer, eterno andróide de "Blade Runner" e cavaleiro do "Feitiço de Áquila", oferece a melhor interpretação do filme em uma única cena, como um cardeal canibal.

Trata-se aqui de um cinema maneirista, que busca o artifício acima das verdades. Tarantino sempre dominou essa linguagem e faz filmes de estética consistente. Mas para Robert Rodriguez - o diretor-titular do filme, autor de diversões como "A Balada do Pistoleiro" e "Um Drink no Inferno" - o salto de qualidade é inegável. Porque onde antes só havia cenas de efeito, em "Sin City" existem personagens bem desenhados e complexos e um sentimento de melancolia que permeia um universo negro e imoral.

Parece incrível, mas "Sin City" é a primeira vez que a HQ é reconhecida como arte por uma outra que até hoje só tinha se aproveitado dela na superfície.


31/01/2013