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Premiado "Tio Boonmee" fala da vida e da morte de forma poética

ALYSSON OLIVEIRA

Do Cineweb

20/01/2011 13h11

É preciso encarar o novo trabalho de Apichatpong Weerasetakhul, "Tio Boonmee que Pode Recordar Suas Vidas Passadas", com o espírito livre, sem preconceitos ou expectativas. A melhor forma de se aproximar do filme, que estreia em São Paulo e Rio de Janeiro, é deixar-se levar pelo fluxo da criação do diretor tailandês, que flerta com o surreal e abraça o poético sem qualquer pudor.

Ganhador da Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2010, "Tio Boonmee que Pode Recordar Suas Vidas Passadas" tem ao centro uma história simples, que o titulo quilométrico revela de imediato. O que só se descobre vendo o filme é que não é necessário preocupar-se com entender tudo. O cinema de Apichatpong - que inclui obras como "Mal dos Trópicos" e "Síndromes e um Século" - é sensorial. Oferece uma experiência bem maior do que apenas acompanhar uma narrativa.

Tio Boonmee é interpretado por Thanapat Saisaymar, um ator não-profissional mais competente do que muitos formados em escolas de arte dramática. O personagem é viúvo, que está agonizando com um problema nos rins, e volta para uma região de florestas no nordeste da Tailândia. Ele conta com a companhia de sua cunhada, Jen (Jenjira Pongpas, atriz sempre presente nos filmes do diretor), o primo Tong (Sakda Kaewbuadee) e Jaai (Samud Kugasang).

TRAILER DO FILME "TIO BOONMEE"

Num jantar, uma espécie de despedida, a barreira entre os vivos e mortos se rompe. A falecida mulher de Boonmee, Huay (Natthakarn Aphaiwonk), vem fazer uma visita. A chegada dela, um espírito, não poderia acontecer de forma mais natural, sem qualquer alerta de que um fantasma entrou em cena. Ela se senta à mesa e começa a compartilhar da conversa. Nesse momento, recordações e pontas soltas do passado e presente se tornam o assunto. São conversas melancólicas e estranhas, mas que se desenrolam sem qualquer estranhamento.

Se parecia um jantar pouco natural, a chegada de outra figura peculiar torna a ceia ainda mais especial. Entra em cena uma criatura diferente, coberta de pelos e com um par de olhos vermelhos faiscantes. Trata-se de Boonsong (Geerasak Kulhong), o filho perdido de Tio Boonmee, que retorna como um espírito em forma de macaco. Há muito tempo a família não esteve tão completa.

No material de imprensa, distribuído no Festival de Cannes, Apichatpong conta que acredita na "transmigração de almas entre humanos, plantas e animais. A história do Tio Boonmee mostra a relação entre homem e animal, e, ao mesmo tempo, destrói a linha que os divide". É exatamente disso, entre outras coisas, de que o filme trata: a linha tênue que separa o real do imaginário, a vida da morte, a existência da ausência.

A morte e a perda são tratadas no filme de forma natural, como mais um estágio pelo qual passamos na vida. As mudanças são encaradas com tranquilidade, como mais um fato do cotidiano.

Como em "Mal dos Trópicos" (inédito em circuito comercial no Brasil), "Tio Boonmee que Pode Recordar Suas Vidas Passadas" sofre uma guinada e abre uma outra narrativa em sua metade. É como se uma nota de rodapé fosse para o meio da página e contasse uma outra história que, apesar de romper o fluxo, ainda assim, está conectada com a trama central. Numa espécie de universo paralelo (ou seria a mente do tio Boonmee se desfazendo, delirando?), uma princesa descobre um prazer sexual especial com um peixe.

A cena pode parecer bizarra, ou até engraçada, mas, no fundo, é de uma poesia ímpar - igual a todo o filme. "Tio Boonmee que Pode Recordar Suas Vidas Passadas" é de uma beleza que beira a alucinação, o sonho, o devaneio da criatividade. Ao mesmo tempo, é uma meditação sóbria sobre a vida e a morte, o mundo contemporâneo e a força da beleza e do amor. É também a celebração do cinema livre de amarras e capaz de transitar pelos gêneros e se reinventar. É um cinema de imagens, mas não apenas - é a arte da delicadeza e que mergulha no fundo da essência humana.