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Ritmo de "O Gerente" obedece o compasso de um poema musicado

Letícia Spiller e Ney Latorraca em cena do filme "O Gerente" - Divulgação
Letícia Spiller e Ney Latorraca em cena do filme "O Gerente" Imagem: Divulgação

SÉRGIO ALPENDRE

Colaboração para o UOL, na Mostra de Tiradentes

23/01/2011 12h16

A Mostra de Tiradentes se consolidou como o local para o cinema jovem. Se na edição de 2010 isso se confirmou, com uma série de filmes - a maioria no máximo interessante - de diretores jovens, o que acabou se tornando a seleção mais fraca das últimas edições, a de 2011 abre com o pé direito de um veterano: ninguém menos que Paulo Cezar Saraceni.

Seu último longa, "O Gerente", finalizado após um AVC (Acidente Vascular Cerebral), tem muitos dos ingredientes que os cineastas jovens que normalmente compõem a Mostra Aurora adorariam utilizar, mas raramente conseguem chegar perto de algo parecido.

Com uma história que prima pela simplicidade e está no limite do infame, que narra alguns casos de um gerente sedutor com mulheres diversas, que ficavam apaixonadas quando ele lhes beijava os dedos da mão, este novo Saraceni é jovial, travesso e despojado.

Seu ritmo, por exemplo, obedece o compasso de um poema musicado (o filme é baseado em Carlos Drummond de Andrade, e homenageia diversos outros poetas). Sua ousadia é a de um moleque diante de um brinquedo novo que lhe parece delicioso de quebrar, ou de deturpar seu funcionamento (a captação digital). E as atuações, sobretudo as de Ney Latorraca e Ana Maria Nascimento e Silva, esposa de Saraceni, que interpretam respectivamente o gerente adorador (comedor?) de dedos da mão e sua vítima preferida, exploram variações tremendas de tom, e quando atingem o tom mais alto se encontram com a louca versão de Pereio para um médico louco.

Saraceni, aos 76 anos, se revela muito mais desafiador e transgressor que qualquer jovem realizador brasileiro. Fez um filme de época em que só as coisas tocadas pelos personagens, ou em seu entorno mais próximo, respeitam a iconografia do ano em que se passa a história (fim dos anos 1950), e ainda faz uma piada com a atual situação da Petrobras como maior investidora do cinema brasileiro (um personagem diz algo mais ou menos assim: "empresa que no futuro será a grande patrocinadora do cinema brasileiro").

Inusitada mistura do estilo de Júlio Bressane com a história vampiresca de "Olhos de Vampa", de Walter Rogério, "O Gerente" ainda traz uma seleção de atores em papéis secundários: Othon Bastos, Nildo Parente, Paulo Cesar Pereio, Letícia Spiller, Simone Spoladore, Maria Lúcia Dahl, Djin Sganzerla, Nelson Xavier, todos integrados à proposta do diretor, que privilegia o amor ao cinema e à arte de filmar no lugar das tais contrapartidas exigidas pelas leis de incentivo, que atravancam a produção atual. Ou, se quisermos, podemos pensar na piada com a Petrobras como uma contrapartida. Seria bem irônico, no tom do filme.

Provavelmente "O Gerente" será atacado por motivos semelhantes aos dos ataques a "O Viajante", seu longa anterior. Mas seria novamente um equívoco grande desprezar uma coletânea de achados por causa de pequenas bobagens aqui e ali. Sejamos apaixonados como Saraceni, pelo cinema e pela vida.