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"O público inteligente que resta não quer mais saber de cinema", diz cineasta Ugo Giorgetti

Cineasta Ugo Giorgetti, diretor de "Cara ou Coroa" - Marlene Bergamo/Folha Imagem
Cineasta Ugo Giorgetti, diretor de "Cara ou Coroa" Imagem: Marlene Bergamo/Folha Imagem

Mauricio Stycer

Do UOL, em São Paulo

06/09/2012 07h00

O cineasta Ugo Giorgetti apresenta ao público nesta sexta-feira (7) o seu nono longa-metragem, “Cara ou Coroa”. Ambientado em 1971, o primeiro filme de época do diretor propõe um olhar original sobre a ditadura militar.

Longe de mostrar episódios épicos ou de tortura e violência, o filme se dedica a apresentar o que Giorgetti chama de “pequenos gestos” de resistência, em especial a aventura vivida por dois jovens, convocados a abrigar dois militantes de esquerda na casa do avô de um deles, militar.

 “Cara ou Coroa” se passa entre julho e agosto de 1971, quando integrantes do grupo americano de teatro Living Theatre ficaram presos, em Belo Horizonte, basicamente por conta do comportamento libertário, fora dos padrões considerados corretos.

“São momentos tão incompreensíveis que parecem inventados”, diz um personagem do filme. Nesta entrevista, Giorgetti fala, com a sinceridade de sempre, do filme e das dificuldades que enfrentou para realizá-lo. O cineasta vê o cinema brasileiro num momento delicado, pela dificuldade de encontrar espaço no mercado para filmes não destinados a adolescentes.

UOL: “Cara ou Coroa” é um filme mais pessoal?
Ugo Giorgetti:
É uma visão particular daquele período. Uma visão minha, mas não acho que seja pessoal.

Se você não colocasse no seu carro o adesivo “Brasil: ame-o ou deixei-o”, eu acho, já era um ato de resistência. Deixar o cabelo grande, o que irritava profundamente um estamento militar vinculado a civis tão retrógrados quanto, também era um gesto de resistência.

Ugo Giorgetti, diretor

O filme enfatiza os “pequenos gestos”, em contraponto a ações mais dramáticas que ocorreram naquele período. Por que isso é tão importante?
Acho que está na hora de se olhar para esse tipo de coisa. Por muito tempo, se olhou para a resistência heroica, armas na mão... Pelas consequências que trouxe, você não podia realmente desprezar esse olhar. Houve muitos filmes com esse olhar. Acho que o assunto já está visto. E tem uma outra resistência, de pessoas que não pegaram em armas, que ideologicamente, muitas vezes, nem tinham muita consistência.

Não eram comprometidas...
Não eram filiados a partido, não tinham lido Marx. Não eram nem sequer de esquerda. Eram pessoas que sabiam que estavam vivendo sob um governo arbitrário. Eram jovens e a primeira atitude era se insurgir. E o que você podia fazer? Se você não colocasse no seu carro o adesivo “Brasil: ame-o ou deixe-o”, eu acho, já era um ato de resistência. Deixar o cabelo grande, o que irritava profundamente um estamento militar vinculado a civis tão retrógrados quanto, também era um gesto de resistência.

Gestos pequenos que, somados...
Esses pequenos gestos ficam à margem da história, como se não tivessem existido ou como se não tivessem nenhuma significação. Talvez, individualmente, não tinham mesmo. Mas se você pegar o conjunto, era ampla essa resistência. Dar um dinheirinho para um cara que estava exilado, comprar o “Pasquim”. Esses pequenos atos formam, na minha opinião, um substrato histórico importante.

O filme vai além disso, não?
Minha ambição era falar mais do período do que da ditadura. A ditadura é um componente importantíssimo do período, lógico. Todas as ideias que vinham de fora naquele período, a ditadura podia tentar reprimir, mas não conseguia conter. Foi um período esfuziante em matéria de agitação cultural e de comportamento. Paradoxalmente, nunca se desafiou tanto a autoridade quanto naquele momento.

 

  • Cena de "Cara ou Coroa", de Ugo Giorgetti

Você trata com muito carinho mesmo personagens que poderiam ser antipáticos, como o taxista conservador.
Você se deparava com isso o tempo todo. Teu pai podia ser um sujeito favorável aos militares, mas isso não implicava que ele fosse um torturador. É outra coisa...

Descontado o lado trágico, você olha para aquele período com nostalgia?
Mas muita. Porque eu era jovem. É o melhor momento da sua vida. Uma bailarina do Bolshoi, numa entrevista ouve a pergunta: “Quais foram os melhores anos de sua vida?” E ela: “Foi entre 1936 e 1942”. O cara se surpreende: “Mas, minha senhora, entre os expurgos do Stálin e a Segunda Guerra?” E ela: “É. Mas eu era jovem e bela”.

E para fazer o filme, foi difícil?
A luta de sempre. Três anos. Estava orçado em R$ 5 milhões, o que não é muito para um filme de época, mas quando conseguimos captar R$ 3 milhões, eu falei: vamos fazer. Nunca consegui o orçamento previsto dos meus filmes.

Esse filme é mais comercial do que outros que você realizou?
Não acho. Meu parâmetro é a cabeça dos distribuidores. “Cara ou Coroa” está tendo o lançamento quase de um “filme-cabeça”. Muito poucas cópias. Tá difícil. O público inteligente que resta não quer mais saber de cinema.

Explique melhor...
É uma conjunção de coisas. Um filme para adulto significa que não é para aquela garotada que vai ao cinema usualmente. Depois, eu acho que a cidade não convida a isso. Veja os índices de criminalidade. E acho também que há um cansaço deste público mais preparado em relação ao cinema brasileiro.

Um problema, aliás, que esse meu filme vai ter. “Um filme sobre ditadura”? Não é um filme sobre a ditadura, mas até explicar. Aí você bate com o trabalho do distribuidor, que é muito precário. O sujeito não tem imaginação.

Ugo Giorgetti, diretor

Por quê?
Um cansaço de certas temáticas. Um problema, aliás, que esse meu filme vai ter. “Um filme sobre ditadura”? Não é um filme sobre a ditadura, mas até explicar. Aí você bate com o trabalho do distribuidor, que é muito precário. O sujeito não tem imaginação. Esse filme tem um público... Como a gente o conquista? Como a gente fala com ele? Como a gente vai atrás? Esquece, velho. “Esse filme é simplório e vulgar. Então vai dar dinheiro. Esse filme não é. Então eu não sei o que fazer com ele.” Essa é a cabeça do distribuidor.

Você ouviu isso de distribuidores?
Um distribuir chegou para mim depois de uma sessão e disse. “O filme é muito legal, só não sei quem pode estar interessado nele”. É justamente a pergunta que eu ia fazer para ele. “Se você não sabe, tem que encontrar.” O filme “E aí, Comeu?” ele sabe o que vai acontecer. Qualquer outra coisa, ele não sabe e não se interessa em procurar saber. Porque tem público, com certeza. Mas você precisa procurar esse público e informar que tipo de filme é.

Você acha que esse é um problema geral da indústria de cinema ou aqui do Brasil?
Acho que aqui está mais grave. Só tem um tipo de filme, que interessa a um tipo de público. O resto ninguém sabe o que fazer com ele.  E tem uma coisa ainda mais assustadora, uma metodologia perversa que está sendo usada, que espanta o público. Se o filme não vai bem na primeira semana, na segunda ele entra em horários alternativos. Daí você não escolhe mais. Só tem sessão às 16h30.

Não ajuda?
Não! A chance de um filme fazer sucesso com o boca a boca não existe mais. Está fora de questão. É uma enganação. Além de destruir o filme, ainda dá a impressão que o filme está lá. Mas só está passando às 14h30! Tem uma crosta de mentira cercando a atividade cinematográfica que eu nunca vi.

 


O que está acontecendo?
Sou testemunha ocular dos procedimentos da Embrafilme. Eles eram vestais romanas perto do que está acontecendo hoje aqui. Talvez porque o dinheiro do Estado viesse diretamente. Não tinha intermediários, como hoje, que são os patrocinadores. O recurso é o mesmo. É dinheiro público.

Funcionava melhor?
Não era perfeito. Tinha proteções... Tive brigas homéricas com a Embrafilme. Mas, você mandava um roteiro e era analisado o mérito dele. Ninguém falava “pode ser qualquer coisa”. Tanto é verdade que a indústria paulista de pornochanchada, na época, nem pedia dinheiro pra Embrafilme. Porque não vinha. Não era comum. O projeto tinha que ter algum valor, em si.

Hoje qualquer filme consegue autorização para captar? Você acha que não deveria?
Não deveria. Isso é o Estado abrir mão de ter qualquer ingerência na atividade cultural. Não tem nada de censura nisso. Apenas que certos filmes podiam ser feitos com recursos pessoais porque eles visam uma outra coisa. Mas, não. Entra todo mundo no mesmo critério.

E é concorrência desleal?
Totalmente. Cada vez, a concorrência é baseada em números, não em qualidade. O resultado, por sua vez, também é enganador. Uma coisa é um filme fazer um milhão de espectadores em 100 salas. Outra, é fazer com 250 salas. Fazer um milhão de espectadores com 250 salas é um fracasso. Mas o espectador não sabe. Vê lá a publicidade que o filme já fez tanto...