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Obscura adaptação de "Capitães da Areia" para o cinema marcou geração russa

Atores americanos e brasileiros interpretam personagens como Gato, Volta-Seca, Sem-Pernas e Pirulito  - Divulgação
Atores americanos e brasileiros interpretam personagens como Gato, Volta-Seca, Sem-Pernas e Pirulito Imagem: Divulgação

Thomas Pappon

Da BBC Brasil, em Londres

10/08/2012 09h06

Se os livros de Jorge Amado abriram um 'novo mundo' para os leitores soviéticos, uma obscura adaptação de Capitães da Areia se encarregou de sedimentar de vez o encanto da Bahia no imaginário dos sofridos comunistas.

O filme americano The Sandpit Generals (nome que traduzido ao pé da letra seria 'Generais do tanque de areia'), dirigido por Hal Bartlett e finalizado em 1971, trouxe - pela primeira vez ao país - imagem, movimento, cores e som à uma história do autor baiano.

Inteiramente filmado em Salvador e arredores em 1969 e estrelado por atores americanos (talvez os mais conhecidos sejam John Rubinstein, ator de séries de TV e filho do pianista Arthur Rubinstein, e Butch Patrick, o "Eddie" da família Monstro) e brasileiros (entre eles Guilherme Lamounier, Eliana Pittman, Marisa Urban), o longa-metragem concorreu ao Festival Internacional de Cinema de Moscou em 1971.

O livro não tinha chegado ainda à URSS, portanto os leitores de Amado estavam conhecendo, também pela primeira vez, a história de bravura e solidariedade de Pedro Bala e sua turma de garotos abandonados da Salvador dos anos 30.

Segundo a pesquisadora Elena Beliakova, da Universidade Estatal de Tcherepovets, quando chegou aos cinemas soviéticos, em 1973, o filme foi assistido por cerca de 43 milhões de pessoas e deixou profundas marcas em toda uma geração de russos.

Para a própria filóloga, que diz ter assistido ao filme "umas 200 vezas", trata-se do "maior filme de todos os tempos e de todos os países".
E ela não está só. No site de cinema IMDB, outros russos tecem loas ao filme e recordam o seu impacto.

É "o filme americano de maior sucesso na União Soviética nos anos 70 e 80", diz 'yonic', hoje morando em Israel. "Vi o filme duas vezes em meados dos anos 70 e ainda não consigo me conformar de quão fascinante, comovente e profundo ele foi. O final e o clima todo do filme me perseguem até hoje".

'Galina', hoje vivendo nos Estados Unidos, recorda quando esteve no cinema "vivendo, amando, torcendo, odiando, rezando, lutando, sofrendo, tentando sobreviver e morrer juntos com os 'capitães da areia'".

Para ela, apesar de ter sido feito décadas antes, Sandpit Generals "é mais forte, comovente e pungente" do que Cidade de Deus. 'Hubtum' de Montreal, no Canadá, diz que o "doce e triste charme dessa obra-prima vem me assombrar desde minha infância".

  • Divulgação

    Dorival Caymmi faz o estivador João de Adão, papel de destaque em "Sandpit Generals"

"Minha jangada vai sair pro mar"
Beliakova e todos os comentaristas do IMDB são unânimes em apontar um elemento crucial para o encanto de Sandpit Generals: a trilha sonora, de Dorival Caymmi.

A Canção da Partida ("minha jangada vai sair pro mar/vou trabalhar meu bem querer..."), interpretada por Caymmi, a música-tema do filme, foi praticamente adotada pelos russos.

Traduzida para o russo e sob o título de 'Capitães de Areia', com uma letra que mais parece um manifesto dos garotos de rua do filme (veja box), a canção entrou para o cancioneiro popular russo, foi gravada inúmeras vezes e, segundo colegas da Seção Russa do BBC World Service, é conhecida no país inteiro.

No YouTube é possível encontrar dezenas (talvez centenas) de clipes de cidadãos russos cantando e/ou tocando a canção.

O jornalista russo Alexander Kan, da BBC, chamou a atenção da reportagem para uma cena-chave de um conhecido filme de gângster russo "pós-perestroika" feito nos anos 90, Brigada.

Em um casamento no estilo de O Poderoso Chefão, a música é tocada pela orquestra a pedido de um dos presentes em homenagem ao noivo e a memórias compartilhadas do passado, o que reforça a impressão de que a canção de Caymmi, por sua ligação com o sucesso do filme, é uma espécie de símbolo da passagem da adolescência para o mundo adulto sob o comunismo da era Brejnev.

  • Divulgação/WikiCommons

    Rhonda Fleming, em foto de anúncio do shampoo Luster-Creme Shampoo, de 1951

Rainha do Technicolor
A história do imenso impacto das canções praieiras de Caymmi na gelada e cinzenta URSS já é boa, mas melhor ainda é a ironia de um filme tão marcante no país ter sido uma produção norte-americana financiada por uma famosa atriz da era de ouro de Hollywood, Rhonda Fleming.

Rhonda era casada, na época, com o cineasta Hall Bartlett e quis bancar o projeto do marido.

The Sandpit Generals foi um grande fracasso nos Estados Unidos, onde foi taxado de "socialista" e "hippie" e acabou sendo, mais tarde, cortado, remontado e relançado sob os títulos The Wild Pack e The Defiant.

No Brasil, ele foi proibido pelo regime militar - e, verdade seja dita, mesmo se tivesse sido liberado, fica difícil imaginar o filme tendo o mesmo sucesso que teve na Rússia, ainda mais vendo vários atores loiros e olhos azuis interpretando meninos de rua de Salvador.

"O filme só foi exibido uma única vez, para a equipe técnica", contou à BBC Brasil o músico e produtor musical André Lamounier, irmão do cantor e compositor Guilherme Lamounier, o 'Gato' do filme.

"Foi uma sessão privada no estúdio Condor, no Rio de Janeiro, para umas cinquenta pessoas, em 71 ou 72, por aí". O americano Kent Lane, que fez 'Pedro Bala', o papel principal do filme, e é filho de Rhonda Fleming - conhecida como "rainha do Technicolor" pela sua beleza e flamejantes cabelos ruivos - contou à BBC que, após as filmagens, a produção foi "por água abaixo".

"Quando voltamos aos Estados Unidos, Hall (que mais tarde faria outro clássico hippie, Fernão Capelo Gaivota) e Rhonda se divorciaram, o filme virou caso de litígio, nunca foi devidamente lançado, não podia nem citá-lo no meu currículo", contou Kent, que pouco depois desistiu da carreira cinematográfica e hoje vive em Palm Springs, na Flórida, "jogando tênis".

Ele diz ter lembranças mistas das filmagens, boas ("todos os brasileiros eram carinhosos") e ruins (o trauma da filmagem de uma ritual de candomblé, em que "decapitaram um bode vivo e passaram o sangue dele no meu peito") e que, até coisa de poucos anos atrás, não tinha a mínima ideia sequer de que o filme tinha sido lançado na versão original.

"Fiquei sabendo quando uma mulher de uma universidade russa me procurou. Ela ficou chocada quando lhe disse que não sabia do sucesso do filme na Rússia".

Surpresa semelhante teve a atriz e cantora Eliana Pittman, que vive no Rio de Janeiro, onde foi procurada por uma "amiga russa da filha de Luis Carlos Prestes (líder comunista brasileiro, que viveu um bom tempo no exílio na URSS), que quis me conhecer por causa do filme".

Frívolo e sexy
Sandpit Generals teve também o mérito de abrir o apetite dos russos para outras adaptações de obras de Jorge Amado pelo cinema. Dona Flor e seus Dois Maridos, de Bruno Barreto, teve um sucesso retumbante no país e foi um dos filmes mais "picantes" já exibidos nos cinemas soviéticos.

O jornalista russo Alexander Kan, de 58 anos, lembra bem da chegada de Dona Flor...: "A censura com certeza impôs vários cortes", diz ele.
"Mesmo assim , o que ficou no filme era de uma sensualidade fora do comum. Causou um grande auê. Os russo nunca tinham visto algo de natureza tão frívola e sexy."