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Em "Além da Vida", Clint Eastwood se arrisca numa trama sobre vida após a morte

06/01/2011 12h43

SÃO PAULO - Aos 80 anos, completados em maio de 2010, Clint Eastwood vive uma década de ouro como diretor. Especialmente nestes anos 2000, muito embora outros de seus trabalhos impecáveis e premiados, como "Os Imperdoáveis", pertençam aos anos 1990.

Sua excelente forma profissional pode mais uma vez ser comprovada no drama "Além da Vida" - no qual o cineasta se arrisca num tema muito escorregadio, a vida após a morte.

Contando com um roteiro do talentoso Peter Morgan (roteirista de "A Rainha" e "Frost/Nixon"), Clint costura três histórias, em três diferentes locais do mundo.

A inteligência e sensibilidade do espectador são despertadas lentamente para interessar-se por essas pessoas e outras que as cercam. Flui naturalmente a curiosidade de saber como e quando se encontrarão - porque não é preciso ser médium para perceber que isso acontecerá.

Marie LeLay (Cécile de France, de "Um Lugar na Plateia") é uma bem-sucedida jornalista francesa, âncora de um respeitado programa de televisão. De férias na Indonésia com o namorado (Thierry Neuvic), ela é surpreendida pelo tsunami - e quase morre.

A maestria do filme, aliás, está igualmente no realismo das sequências do tsunami, realmente impressionantes.

De volta a casa, em Paris, Marie retoma o trabalho, mas se sente diferente. Suas motivações parecem ter perdido o sentido. Ela sente-se particularmente perturbada pelas visões que experimentou no seu estado de quase morte - quando viu vultos vindo em sua direção, numa atmosfera brilhante.

TRAILER DO FILME ''ALÉM DA VIDA''

Ela procura conversar sobre o assunto, mas tudo o que encontra é descrédito. E sua vida tão impecável e organizada começa a desmoronar.

Em Londres, os gêmeos Marcus (George McLaren) e Jason (Frankie McLaren) são o esteio um do outro, unidos diante da séria instabilidade da mãe, uma dependente de heroína com dificuldades de abandonar o vício. Jason, especialmente, é o líder da casa. Mas o equilíbrio desaba quando ele é atropelado e Marcus deve encarar uma família adotiva temporária, enquanto a mãe vai se tratar.

Em San Francisco, George Lonegan (Matt Damon, trabalhando pela segunda vez com o diretor, depois de "Invictus") tem uma relação íntima e incômoda com a morte. Ele parece dotado do dom de intermediar o diálogo entre os mortos e os vivos, simplesmente segurando as mãos desses últimos.

O sucesso é tanto que ele pensou em viver disso, o que seduz especialmente seu irmão, Billy (Jay Mohr). Mas George acaba desistindo de tudo, encontrando emprego como operário e procurando desesperadamente uma vida normal.

Nesse terreno pantanoso, cheio de armadilhas religiosas, o diretor encontra os meios para impor seu estilo. Mostra-se menos interessado em arrancar certezas sobre a outra vida do que em extrair o máximo da verdade humana de cada um de seus personagens.

Assim, pouco importa se George tem mesmo um dom - embora se deixe muito clara a malandragem explícita de uma série de falsos místicos procurados pelo menino Marcus. Também não é relevante acreditar ou não nas visões de Marie. O importante é que suas relações com esse possível além da vida mudou substancialmente sua forma de pensar e motiva novos e inquietantes sentimentos.

Não há como duvidar da dor de George, solitário ao extremo, da aflição de Marcus para um contato com o irmão morto, nem da angústia de Marie por explorar suas novas percepções. Sua honestidade, assim como a do filme, são inquestionáveis.

Mr. Eastwood, seja lá qual for a sua fé, se tiver uma, não quer converter ninguém, nem fazer um filme doutrinário - como aconteceu com alguns dos supersucessos espíritas brasileiros de 2010.

"Além da Vida" é mais uma de suas obras sobre a extraordinária complexidade da vida e da infinidade de escolhas difíceis que seres humanos têm de fazer para explorar seus caminhos. E ele o faz como um mestre, com elegância e sutileza.

(Por Neusa Barbosa, do Cineweb)

* As opiniões expressas são responsabilidade do Cineweb