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Premiado em Cannes, "Poesia" aborda poder transformador da arte

24/02/2011 17h03

É possível ensinar a escrever poesia? Aparentemente, sim. Num centro cultural numa cidade da Coreia do Sul, um grupo de pessoas senta-se em mesinhas escolares. Seus olhares são ávidos como de crianças no primário à espera de aprender as primeiras letras do alfabeto.

O professor, um poeta conceituado, mostra-lhes uma maçã e pergunta se alguém já viu a fruta. Claro, todos já viram, como ele mesmo diz, milhares de maçãs em suas vidas. "Vocês nunca viram uma maçã de verdade", decreta. Mas qual a diferença entre ver e enxergar?

Ao centro do drama sul-coreano "Poesia" está exatamente essa questão: o que vemos e o que enxergamos? Mija (Jeong-hie Yun) é uma senhora que cuida do neto, e trabalha como faxineira e uma espécie de enfermeira de um homem que sofreu um derrame (Hira Kim). Ela é a última a se matricular na aula de poesia, e a aluna mais esforçada. Em seu caderninho, faz anotações quando frases e observações lhe ocorrem - não importa onde esteja.

A atriz Jeong-hie era uma das favoritas no Festival de Cannes em maio passado - mas acabou perdendo para Juliette Binoche, em "Cópia Fiel", de Abbas Kiarostami, ainda inédito no país. "Poesia" saiu da competição com o prêmio de melhor roteiro.

O diretor e roteirista Chang-dong Lee estabelece a protagonista de "Poesia" por meio das suas ações simples do cotidiano. Trabalhar - limpando o apartamento e cuidando do paciente -, fazendo comida para o neto ("o que faz a vovó mais feliz no mundo é dar de comer para Wook") e ir ao médico. Alguns elementos, no entanto, perturbam a paz da vida de Mija.

TRAILER DO FILME ''POESIA''

Ao sair de um hospital, a senhora depara-se com uma mãe desesperada, que recebia o corpo da filha que se atirou no rio. A dor desta mãe é incomensurável e mais tarde irá reverberar na vida de Mija. Naquele dia, a protagonista saía de uma consulta médica, reclamando estar com a memória afetada, não se lembrar de palavras simples. Mais tarde, uma médica lhe explicará: primeiro esquecerá os substantivos, depois, os verbos. Mija a olha, mais intrigada do que inconformada.

O diretor e roteirista, Chang-dong, e a atriz Jeong-hie dão vida a Mija de forma repleta de nuances e sutilezas - uma personagem que já nasceu destinada a ser grande. Sempre bem-arrumada, geralmente com um chapéu branco e uma echarpe, ela cruza as ruas em seus trajetos cotidianos. Com uma atuação contida, a atriz transforma a jornada de sua personagem, uma mulher simples que passaria despercebida, em algo valioso.

Mija se reúne com os pais de outros garotos, que, ao lado de seu neto, abusavam da garota que se matou. Todos eles são, claramente, mais ricos do que a senhora, que cuida do neto, enquanto a filha trabalha em outra cidade. Eles propõem fazer um acordo com a mãe da vítima, indenizando-a para que a história não se torne pública e atrapalhe o futuro dos rapazes. Mija, no entanto, não tem a quantia que eles pedem.

A arte - a poesia, nesse filme, em especial - é não apenas uma válvula de escape do cotidiano, mas, também, a ferramenta para observação e compreensão dos fatos da vida de Mija. Quando, finalmente, ela dá ordem ao poema sobre o qual trabalha o filme todo, Chang-dong traz à tona o poder catártico e libertário que a poesia tem na vida da personagem. Ao final, "Poesia", tal qual aquilo que prega, é um filme capaz de transformar a sensibilidade das pessoas, e, consequentemente, do mundo.

(Por Alysson Oliveira, do Cineweb)

* As opiniões expressas são responsabilidade do Cineweb