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A história do samba, sem fantasia

André Barcinski

24/04/2017 05h59

Pixinguinha, João da Baiana e Donga: pioneiros do samba


Com indesculpável atraso, terminei de ler "Uma História do Samba: Volume 1 (As Origens)", de Lira Neto. É o primeiro de uma trilogia em que Neto – biógrafo de personagens tão diversos quanto Padre Cícero, Getúlio Vargas e a cantora Maysa – contará toda a trajetória do samba, do fim do século 19 aos tempos atuais.

De cara, o que chama a atenção no livro é seu estilo leve, informativo e sintético, sem o ranço didático e tedioso que frequentemente vemos em estudos sobre nossa cultura popular. O primeiro volume vai do fim do século 19 à década de 1930, e tem 342 páginas. Descontando notas, índice remissivo e fontes, Lira Neto conseguiu contar quase 40 anos de história em cerca de 260 páginas. O livro passa voando.

Outra qualidade do texto é a ausência do tom paternalista e um tanto fantasioso que se vê em vários textos sobre o samba, especialmente os mais antigos. Muitos dos velhos cronistas da história do samba eram amigos pessoais dos artistas – alguns, até parceiros – e tinham uma certa tendência a mitificar os personagens retratados: Pixinguinha era um anjo que recebia inspirações divinas para compor obras-primas como "Carinhoso"; Cartola acordava de manhã, olhava a vista de seu barraco na Mangueira e em cinco minutos compunha "As Rosas Não Falam"; Nelson Cavaquinho enchia a cara nas rodas de samba e voltava para casa desmaiado em cima de seu cavalo. Tá bom.

Lira Neto não perde tempo com elucubrações pseudopoéticas. Os personagens da história são pessoas de verdade, cheias de problemas – pessoais, sociais, financeiros – e que colaboraram para criar um de nossos gêneros musicais mais importantes.

A história começa no Rio de Janeiro no fim do século 19, logo após a Abolição da Escravatura, quando os governantes, com o objetivo de "higienizar" a cidade e abrir caminho para largas avenidas, demoliram milhares de cortiços que abrigavam ex-escravos e a população pobre do Rio. Sem ter para onde ir, esse povo ocupou morros como os da Providência, Mangueira e Salgueiro, além de vilarejos e engenhos suburbanos como Portela e Oswaldo Cruz. Nessas comunidades, o samba floresceu.

O início não foi fácil. O preconceito contra a cultura africana era imenso, e a elite carioca não queria ver sua cidade associada àquele som "bárbaro". Mas havia homens poderosos, incluindo políticos, que frequentavam os terreiros de macumba e as rodas de música e que ajudaram, mesmo que inconscientemente, o samba a sair dos guetos e dominar a cidade.

O livro conta a história de pioneiros como João da Baiana, Sinhô, Hilário Jovino, Donga, Pixinguinha, Tia Ciata e tantos outros que popularizaram o gênero. Também rechaça algumas histórias que muitos tomam por verdade. Por exemplo: "Pelo Telefone" (1917), de Donga, não foi a primeira música classificada como "samba" a ser gravada. Desde 1902, pelo menos 20 canções foram lançadas em disco e classificadas como "sambas".

Outra lenda desfeita é a do suposto triunfo internacional dos Oito Batutas, a banda que reunia Pixinguinha, Donga e outros bambas, que excursionou à França nos anos 1920. Relatos da época classificaram a turnê como um acontecimento histórico e que mereceu ampla cobertura da imprensa europeia. Lira Neto mostra que não foi bem assim.

Por outro lado, o livro traz histórias emocionantes – e comprovadas – como a de Pixinguinha, um prodígio na flauta e que já era músico profissional aos 13 anos de idade, e a de João da Baiana, exímio percussionista, que teve seu pandeiro apreendido pela polícia (a simples posse de um pandeiro qualificava alguém como "vagabundo"), mas que ganhou de presente de um grande fã, o senador Pinheiro Machado, um pandeiro novinho em folha, com uma dedicatória gravada na madeira, para que o músico não fosse mais importunado pelos meganhas.

Esse "Volume 1" vai até o surgimento das primeiras escolas de samba e o aparecimento de craques como Noel Rosa, Cartola, Ismael Silva, Bide, Paulo da Portela e Almirante. É um livro excepcional, que mistura grandes personagens a um relato minucioso sobre a criação de uma cidade e de um gênero musical que ajudou a definir a identidade brasileira. Deveria ser leitura obrigatória em nossas escolas.

R.I.P. JERRY ADRIANI

O grande Jerry Adriani morreu domingo, aos 70 anos. Fiz um texto sobre a vida e obra dele para a "Folha de S. Paulo". Leia aqui.

Sobre o autor

André Barcinski é jornalista, roteirista e diretor de TV. É crítico de cinema e música da “Folha de S. Paulo”. Escreveu sete livros, incluindo “Barulho” (1992), vencedor do prêmio Jabuti de melhor reportagem. Roteirizou a série de TV “Zé do Caixão” (2015), do canal Space, e dirigiu o documentário “Maldito” (2001), sobre o cineasta José Mojica Marins, vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Sundance (EUA). Em 2019, dirigiu a série documental “História Secreta do Pop Brasileiro”.

Sobre o blog

Música, cinema, livros, TV, e tudo que compõe o universo da cultura pop estará no blog, atualizado às terças-feiras.