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Representante em Berlim, "Joaquim" mostra um país de herói morto

Carlos Albuquerque

Deutsche Welle

18/02/2017 14h34

Em sua estreia mundial no Festival de Berlim, o longa brasileiro sobre Tiradentes deixa a desejar, como uma obra de arte inacabada, um diamante não lapidado, analisa o jornalista Carlos Albuquerque.

A estreia mundial de "Joaquim", filme brasileiro que concorre ao Urso de Ouro na Berlinale, o Festival de Cinema de Berlim, foi acompanhada na noite de quinta-feira (16) de protestos contra "um governo ilegítimo apoiado pelas elites econômicas", como declarou o diretor Marcelo Gomes ao subir o palco após a projeção da película. 

Até nisso, o cineasta pernambucano foi coerente, pois seu filme trata da luta de um homem que, lentamente, toma consciência das forças repressoras, da exploração do ser humano, da absoluta falta de meritocracia no ainda incipiente Brasil do final do século 18. E esse homem se chama José Joaquim da Silva Xavier, vulgo Tiradentes, protagonizado pelo ator Júlio Machado.

Ao longo de 97 minutos, o espectador vê a cabeça decapitada de Tiradentes em frente a uma capela barroca, enquanto escuta a voz do falecido anunciar a sua morte, a sua história e o seu futuro reconhecimento como herói nacional nos livros escolares.

A partir daí, a trama se desenrola em torno de um homem íntegro, diligente, fiel às ordens da Coroa portuguesa e apaixonado pela escrava Preta, interpretada pela atriz Isabél Zuaa.

O alferes Joaquim acredita que sua fieldade e diligência iriam lhe trazer a tão esperada patente de tenente e que as pedras que encontrou em sua cansativa e perigosa expedição aos sertões proibidos pudessem lhe render dinheiro suficiente para comprar a liberdade de sua amada. Mas nenhuma coisa nem outra acontecem: Joaquim percebe que quem roubava muito ia para frente e quem roubava pouco, ou nada, ficava para trás naqueles Brasis setecentistas.

Preta, por sua vez, havia fugido para um quilombo após esfaquear o administrador a quem foi obrigada a servir sexualmente. Joaquim vai atrás dela e, ao reencontrá-la, seu grande amor o despreza. E o único companheiro fiel, seu escravo João, interpretado pelo ator Welket Bungué, da Guiné-Bissau, pede que Tiradentes o venda para a esposa dele, que havia conseguido juntar o dinheiro para comprar a sua alforria.

Tem início a tomada de consciência daquele que viria a ser, talvez, o nosso único herói nacional. Joaquim toma conhecimento de ideias iluministas e da independência americana, se aproxima dos fidalgos inconfidentes, para ser, mais uma vez, usado por eles como bode expiatório de um levante fracassado.

Com um enredo tão coerente, pergunta-se então por que "Joaquim" é um filme que deixa a desejar, como uma obra de arte inacabada, um diamante ainda não lapidado. Enquanto Gomes consegue, linda e empoeiradamente, relatar o nascimento de uma nação a partir da interação de diferentes raças, os hesitantes aplausos no final da apresentação mostraram que o público que lotou o Palácio da Berlinale não havia compreendido que a película havia acabado.

É como se todos esperassem ler "to be continued", ou seja, "veja no próximo capítulo", nas legendas em inglês que insistiam irritantemente em traduzir cachaça como "rum".

Controvérsia em torno de Tiradentes

Com uma belíssima fotografia em primeiro plano, uma pesquisa histórica aprimoradíssima e uma direção de arte encantadora, "Joaquim" tinha tudo para se tornar um clássico. Sem falar nas magníficas interpretações de Júlio Machado, de Isabél Zuaa e Welket Bungué, bastante aplaudidos pela plateia. Além disso, com sua filmagem com a câmera na mão, o diretor conseguiu, apesar de ter abusado do recurso em alguns momentos, aproximar o público da narrativa.

O filme contém também momentos de grande poesia, como aquele em que o índio que acompanhava a expedição para os sertões proibidos começa a cantar com o escravo João, cada um na sua língua, cada um do seu jeito, anunciando um novo canto, o canto do brasileiro. Ou quando Joaquim se encontra no quilombo com a sua amada e a chama de Preta, no que ela retruca: preta é nome de cor, meu nome é Zuá! Com tudo isso, pergunta-se, afinal, qual o problema deste filme? Talvez a montagem.

A cena inicial só é retomada no final, o filme se torna assim um hiato, bastante incompreensível, principalmente para um público estrangeiro que não estudou História do Brasil na escola. Gomes concentrou-se muito na psicologia do personagem e reservou pouco tempo para os fatos históricos da Inconfidência Mineira. Tanto que um jornalista da emissora pública de Berlim-Brandemburgo Rbb afirmou que a película mostrava a "desmontagem de uma herói nacional” em sua crítica. Ou seja, justamente o contrário da intenção do diretor, que era mostrar o desenvolvimento do Tiradentes jovem, a sua politização que o levou a se tornar mártir.

Em vez disso, Gomes transformou uma pessoa inicialmente ingênua usada pela Coroa portuguesa numa pessoa de pouco discernimento, usada pelos fidalgos inconfidentes e com um discurso tolo que provocou risos indesejados na plateia. Mas talvez tenha sido essa a intenção do cineasta, talvez o jornalista da Rbb esteja certo.

Com seu filme, Gomes parece ter acentuado ainda mais a controvérsia em torno da figura de Tiradentes, um herói nacional frequentemente retratado com as mesmas barbas de um profeta e que a partir do final do século 19 passou a ser usado tanto pela esquerda quanto pela direita para os mais variados fins. Nisso, o diretor também foi coerente. Apesar das dificuldades de roteiro, a principal lição que se pode tirar de "Joaquim" é que, em termos cívicos, é difícil retratar incontestavelmente um ídolo vivo no país de Calabar, no país de Duque de Caxias, assim teria sido mais fácil apresentar Tiradentes como um herói morto.

Nesse ponto, o filme de Marcelo Gomes também traz uma advertência: não devemos deixar que os covardes vivos fiquem com o nosso ouro.