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"Me Libera Nega": Como um quase roubo originou a nova treta do verão baiano

Tiago Dias

Do UOL, em São Paulo

06/01/2017 19h22

Se você ainda não ouviu "Me Libera Nega" neste verão, prepare-se. A música tem surgido de mansinho, no ritmo de samba-reggae, com a promessa de bater o tsunami de "Deu Onda", de MC G15, e é aposta certa para o Carnaval desde que foi cantada pela primeira vez... na porta de uma delegacia em Salvador.

Preso em flagrante ao tentar roubar um celular, o autor da música ainda estava no porta-malas da viatura quando cantou sua composição para a equipe do programa policial "Balanço Geral", da TV Record, que registrava sua chegada. "Foi um erro, um 'escorregamento'", explica Ítalo Gonçalves, por telefone, ao UOL. "Mas Deus me deu a visão, naquele momento. Quando eu vi a movimentação, pensei: ‘Chegou a minha hora’."

Enquanto o policial narrava o flagrante, o suspeito aproveitou o microfone da emissora para cantar --com o sotaque baiano e a língua ligeiramente presa: “Me libera nega, deixa eu te amar / Me libera nega, novinha vou te sentir / Me libera nega, vem pro Olodum / Eu vou te dar um beijo, depois vou te dar mais um”. Sentindo que nascia ali um viral, o repórter deu corda: "É um artista". Hoje, Ítalo já pode se considerar um.

Ítalo Gonçalves ganhou fama ao ser preso em novembro; hoje, ele é conhecido como MC Beijinho, e é uma das promessas do Carnaval - Divulgação - Divulgação
Ítalo Gonçalves ganhou fama ao ser preso em novembro; hoje, ele é conhecido como MC Beijinho, e é uma das promessas do Carnaval
Imagem: Divulgação

Durante os dois dias que passou na detenção, em novembro passado, o baiano de 19 anos foi alçado de meliante suspeito a grande revelação do Carnaval. O caso televisionado colocou “Me Libera Nega” na boca do povo e, pouco mais de um mês depois, a canção ganhava versão em estúdio e distribuição pela multinacional Sony Music.

Ítalo encerrou o ano repaginado. Tomou um banho de loja, estreou seu clipe com a participação da atriz Aline Nepomuceno (de "Ó, Pai, Ó") e assumiu a nova alcunha artística, inspirado na própria composição: MC Beijinho. A letra ingênua viciou tanto o jogador Daniel Alves quanto Caetano Veloso, que se rendeu aos versos em uma versão bossa-nova ao violão.

Ele lamenta que a fama tenha batido à porta justamente nas páginas policiais, mas não deixa de comemorar. "No fim, consegui reverter toda a situação", diz. Ou quase toda. Antes mesmo de ser lançada oficialmente na sua voz, "Me Libera Nega" já circulava com outro cantor e outra versão.

Hit em disputa

Nos dias seguintes à prisão, Ítalo continuou a ganhar cartaz. A pauta na televisão agora era: "Ítalo vai conseguir mudar de vida?". Para ajudar na missão, a emissora chamou o cantor Filipe Escandurras. Conhecido como compositor de sucessos de outros carnavais, como "Lepo Lepo", sucesso com Psirico, ele selou a parceria e chamou Ítalo para o estúdio.

Na primeira gravação, a letra ganhou um verso a mais, não ficou restrita à TV, mas embora o nome de MC Beijinho aparecesse nos créditos como participação especial, pouco se ouvia da sua voz. Até mesmo um outdoor com Escandurras em destaque apareceu no centro de Salvador para promover a música, mas sem citar o novo MC. O caso dividiu os ouvintes. Teve quem creditou o sucesso à primeira gravação de Filipe Escandurras, enquanto outros defendiam que se tratava de apropriação indevida.

Apostando no hit, Filipe Escandurras aparece em outdoor em Salvador: "Nesse verão cê me libera nega?" - Reprodução/Bahia Notícias - Reprodução/Bahia Notícias
Apostando no hit, Filipe Escandurras aparece em outdoor em Salvador: "Nesse verão cê me libera nega?"
Imagem: Reprodução/Bahia Notícias

Editora da composição, a Universal afirmou ao UOL que enviou ao artista uma notificação para que a música deixe de ser executada imediatamente. "Essa disputa por [autoria de] músicas é muito comum na Bahia, mas no Brasil a lei obriga a pedir autorização. [Escandurras] não tem a autorização. Nossa missão é proteger o autor", explica Marcelo Falcão, diretor da Universal Brasil.

Escandurras afirmou ao UOL que gravou "Me Libera Nega" quando a canção não havia sido registrada. "Com a entrada de terceiros, o Escandurras não tem mais interesse e vai deixar de trabalhar a música", afirmou o advogado do artista à reportagem.

Com a fala mansa e a ingenuidade evidente quanto ao estrelato recém-descoberto, Ítalo resumiu desta maneira a treta pré-carnaval: "Os fãs reclamaram que minha voz não aparecia. Por isso gravamos uma só comigo".

De vendedor de mousse a puxador de trio

Antes de se tornar MC Beijinho, Ítalo vivia intensamente o Carnaval baiano, mas do outro lado da corda. Passava a folia vendendo algodão-doce e mousse no circuito Barra-Ondina. Só entrava na pipoca quando cruzava com o trio da antiga banda de Bell Marques. "Sou amarradão no chicletão", conta.

Fora da festa, trabalhava em um pet shop e no camelô. Ganhava R$ 2 a cada barraca montada. Durante o trabalho, cantava a famosa composição. "Fazia um tempinho que eu vinha tentando emplacar essa música. Ia lá na ponta do Olodum. Nunca rolava", lembra. "Mas muita gente me dizia que um dia ela ia explodir. Eu sempre acreditei. A música agora é do povo."

Foi essa certeza que o cineasta Chico Kertész teve ao assistir a reportagem da Record. "Fiquei impressionado com a capacidade que ele teve de reverter aquilo", conta. Diretor do documentário "Axé: Canto do Povo de um Lugar", Chico dirigiu por iniciativa própria o clipe de "Me Libera Nega" e prepara um curta-metragem sobre Ítalo e seu --até agora único-- sucesso. "Quero ver até onde vai chegar essa música", diz o cineasta.

Após a detenção, Ítalo segue em uma casa de recuperação cristã, em Salvador, e diz estar se preparando para subir no seu próprio trio este ano: "Vocês vão ouvir muito falar de mim neste Carnaval".


* Com colaboração de Renata Nogueira