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Quadrinista troca reflexões por situações absurdas vividas com os filhos

Capa do "O Guia do Pai Sem Noção", de Guy Delisle - Divulgação
Capa do "O Guia do Pai Sem Noção", de Guy Delisle Imagem: Divulgação

Ramon Vitral

Colaboração para o UOL

05/07/2017 04h00

O quadrinista canadense Guy Delisle lembra que a pele entre os nós de seus dedos ficava cor de sangue quando ele treinava boxe durante a infância. O autor do recém-lançado, "O Guia do Pai Sem Noção" (Zarabanata), diz que praticava em um saco de areia instalado em uma viga na chácara de seu pai. Alguns anos depois, já um artista renomado, ele se deparou com um saco semelhante na casa do irmão de um amigo.

Ele deu alguns jabs e logo insistiu que seu filho de cinco anos também arriscasse alguns socos. Pouco estimulado pela brincadeira, o garotinho dá um golpe que não faz o saco nem ao menos mexer. Delisle insiste e sugere várias técnicas e estímulos. Ele só desperta o esforço do filho ao sugerir: “Imagine que é a sua irmã!”.

As 192 páginas da mais recente obra de Delisle publicada em português compõem uma coletânea de experiências insólitas do quadrinista com seus dois filhos, os pequenos Louis e Alice. Na França, "O Guia do Pai Sem Noção" começou a ser publicado em 2012 e atualmente está em seu terceiro volume, com o quarto sendo produzido pelo autor.

“Quando lancei o primeiro não queria que o meu filho lesse”, diz o quadrinista em entrevista ao UOL. “Mas muitas das crianças na escola dele estavam lendo e achei que poderia ser um pouco constrangedor para o Louis, então lemos juntos. Expliquei o que eram aquelas histórias, que elas estavam ali por serem engraçadas e para fazer piada com a realidade”, conta o artista.

Capa do aclamado "Crônicas de Jerusalém" - Divulgação - Divulgação
Capa do aclamado "Crônicas de Jerusalém"
Imagem: Divulgação
Trajetória

Hoje Delisle tem 51 anos e é um dos quadrinistas mais renomados do mundo. Nos Estados Unidos, ele já foi indicado para os Prêmios Eisner e Harvey, mas foi na França que recebeu sua maior honraria, o Prêmio de Melhor Álbum do tradicional Festival de Angoulême por seu trabalho no aclamado "Crônicas de Jerusalém" (Zarabatana). O quadrinho é um longo diário de viagem do autor durante seu período na cidade sagrada de judeus, muçulmanos e cristãos acompanhando a esposa, funcionária da organização Médico Sem Fronteiras.

Segundo Delisle, o Guia publicado em português é consequência direta do término de sua vida nômade, marcada por álbuns sobre suas estadias na Coréia do Norte (Pyongyang - Uma Viagem à Coréia do Norte), China (Shenzen) e Myanmar (Crônicas Birmanesas). O autor conta que ao passar a trabalhar em casa e sempre na companhia dos filhos, começou a observar com mais atenção os absurdos de seu convívio com as crianças.

“Eu resolvi que queria fazer algo menor, com humor, nada relacionado a política ou geografia, apenas eu e as crianças”, conta o quadrinista. “Como eu estava mais em casa, de vez em quando alguma coisa acontecia. 'Bem, isso é engraçado, talvez eu devesse fazer alguma coisa com isso'”, diz. Ao publicar o primeiro quadrinho da série em seu blog, não tinha pretensão de dar início a um projeto que resultou em três livros.

O primeiro dos relatos mostra o drama do pequeno Louis ao ser esquecido durante mais de uma noite pelo "ratinho do dente", equivalente francês à fada que troca o dente caído por uma recompensa. No dia que finalmente recebe uma moeda em troca de seu dente, o garotinho questiona o pai se não é ele a identidade real do rato. “Você acha que nós teríamos esquecido de fazer isso duas noite seguidas?”, retruca Delisle ao filho.

O autor diz não ter demorado para receber a mensagem de um pai relatando ter vivido situação semelhante. O retorno imediato da internet o estimulou a continuar produzindo e a repercussão do projeto empolgou seu editor. “Ele me ligou e disse que deveríamos transformar em um livro, que seria divertido, então acabou acontecendo e o primeiro volume vendeu mais de 100 mil cópias”, conta Delisle.

Outras obras

E assim como o "Guia" contrasta com os trabalhos prévios de Delisle sobre suas viagens, sua obra mais recente lançada na França e nos Estados Unidos é atípica em relação a seus títulos anteriores. "Hostage" (Refém, em tradução livre) é apontado por especialistas como candidato potencial a vários prêmios do universo dos quadrinhos. O livro é uma longa adaptação para o formato de HQ de um relato dado a Delisle por Christophe André, funcionário da Médicos Sem Fronteiras que passou 111 dias em cativeiro na Chechênia após ser sequestrado no último dia de sua missão na região do Cáucaso em 1997.

"Hostage" impressiona por suas 436 páginas coloridas apenas em tons de azul e quase integralmente focadas nas reflexões de André enquanto algemado a um radiador em um quarto com apenas um colchão fino no chão. Durante o período, ele recebia três visitas diárias de seus captores para alimentação e ida ao banheiro. Habituado a se colocar como personagem de seus quadrinhos, sempre narrando as histórias em primeira pessoa, Delisle só aparece na primeira página da obra.

“Eu já queria contar essa história há um bom tempo, mas ficava adiando por causa dos livros de viagens”, conta o quadrinista. O autor disse ter passado quase dois anos por conta da obra. “O cativeiro no qual André é mantido é mais sua mente do que o quarto apertado e sombrio no qual foi confinado. Delisle transforma tédio em um suspense irresistível”, afirma uma crítica sobre o quadrinho publicada no jornal The New York Times.

“Todo mundo pode se relacionar de alguma forma com a ideia de ser sequestrado, você está no lugar errado e no momento errado e então vira um refém”, reflete o autor. “Mesmo antes da ideia do livro existir eu já me colocava no lugar do Christophe. ‘Uau! O que eu faria na situação dele?’”, cogita Delisle. O quadrinista disse ter concluído ser impossível se colocar no lugar do amigo. “Ele me explicou que não era a mesma pessoa enquanto esteve sequestrado. Por mais que você pense ‘eu faria isso ou aquilo’, você agiria de outra forma naquela situação, você também seria outra pessoa”, afirma.