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Polêmico e divisivo, o excelente mãe! mostra o poder devastador da criação

Roberto Sadovski

21/09/2017 11h00

Jennifer Lawrence in mother!, from Paramount Pictures and Protozoa Pictures.

Darren Aronofsky não é um diretor de cinema: ele é um cirurgião. Não existe em mãe!, seu trabalho mais recente, um frame fora do lugar, uma imagem sem propósito, uma linha de diálogo que não cumpra alguma função. Tudo obedece uma precisão quase obsessiva, e um movimento em falso com o bisturi traria consequências severas. Não é o que acontece. Aronofsky é um cirurgião dos bons. Mas, só para bater a metáfora até a inconsciência, também não é alguém que pessoas normais tenham um grande prazer em visitar. mãe! não é, portanto, um "filme" no sentido mais fácil do termo. É incômodo, desconfortável, por vezes sufocante e quase insuportável. É um trabalho que evoca imagens e memórias, sentimentos e emoções, raiva e frustração, amor e ódio. É, vale apontar, um pequeno milagre, um "filme de arte" que surge como a antítese do cinema como entretenimento – mesmo que tenha sido produzida e lançado sob as asas de um grande estúdio. E é também uma das experiências mais interessantes e inesquecíveis que você terá no cinema este ano.

Uma coisa, porém, mãe! definitivamente não é: um filme de terror. Não se deixe enganar, portanto, pela campanha de marketing que trouxe O Bebê de Rosemary como referência máxima. Assim como fez em Noé, Aronofsky buscou nas páginas da Bíblia, velho e novo testamento, não só inspiração, mas seu poder como mito para tecer uma alegoria sobre vida e morte, sobre criador e criação, sobre o culto à celebridades e sobre nossa relação com o futuro do planeta – até porque eu e você e o tiozinho na poltrona ao lado também fazemos parte dessa história. Não que o diretor tenha a menor intenção em reinterpretar dogmas religiosos ou histórias sagradas para alguns com propósito de entretenimento: seu interesse é puramente narrativo e simbólico. Com mãe!, o responsável por Réquiem Para um Sonho e Cisne Negro traça uma trama curiosa sobre a Mãe Natureza como a mãe de todos nós, e como ela reage quando é invadida por visitantes indesejados. Esse incômodo, transformado aos poucos em impotência e, depois, em fúria primal, é o fio condutor da trama.

Left to right: Javier Bardem and Jennifer Lawrence in mother!, from Paramount Pictures and Protozoa Pictures.

Javier Bardem, Jennifer Lawrence e um monte de gente estranha

No centro da história está o casal formado por Jennifer Lawrence e Javier Bardem. Eles moram numa casa de estilo vitoriano no centro do que parece um bosque. Ele é um poeta, assombrado por um bloqueio de escritor pesado, incapaz de traçar uma linha sequer. Ela, passiva, observa seu amado ao mesmo tempo em que se ocupa com a reforma do lugar, que tempos atrás foi praticamente ao chão depois de um incêndio. O idílio causa estranheza, já que o casal mal troca carícias e demonstram química quase zero – apesar da devoção de Jennifer, Javier permanece descontente. Pode até parecer uma escolha equivocada de elenco, mas lembre-se: Aronofsky é um cirurgião e sabe exatamente o que está fazendo. A rotina é quebrada, porém, com a chegada de um estranho (Ed Harris), um cirurgião que bate à porta em busca de uma pousada e é convidado para ficar. No dia seguinte, sua mulher também dá as caras, malas em mãos, sem ser anunciada. Para Javier, é um modo de trazer vida à casa; para Jennifer, é um incômodo crescente que ela se sente mais e mais impotente para lidar.

O que parece um thriller psicológico centrado na figura incomodada de Jennifer, logo se mostra algo além. A casa, afinal, "sangra". Quando Jennifer toca suas paredes, ela consegue sentir seu "coração". Enquanto Ed Harris surge mais e mais debilitado (em uma cena, um enorme rombo surge onde deveria estar um par de costelas), Michelle Pfeiffer mostra sua habilidade para quebrar a aparente paz de sua anfitriã. Existe um clima levemente sobrenatural, que se torna mais evidente quando o filme traz um assassinato, quando a casa se torna palco para um velório, quando o lugar, até então o paraíso de um casal apaixonado, recebe estranhos numa mistura de desrespeito, sexo, grosseria e histórias. Quando a casa parece ter, mais uma vez, pulsação. É o que o poeta precisava para criar sua obra-prima. E é quando mãe! joga qualquer resquício de lógica pelo ralo para se tornar um espetáculo caótico de hedonismo, adoração, insanidade, violência e morte – de forma tão intensa e tão surreal que, a certa altura, a impressão é que Darren Aronofsky perdeu completamente o controle de seu filme. Mas é só impressão. Ele sabe exatamente o que está fazendo.

Left to right: Jennifer Lawrence and Director Darren Aronofsky on the set of mother!, from Paramount Pictures and Protozoa Pictures.

Darren Aronofsky dirige sua musa em mãe!

O que não é, também, nem um pouco sutil. mãe! lida com alegorias bíblicas claras, com o Criador enebriado com sua criação, Adão e Eva, Caim e Abel, o ciclo infinito de vida e morte e a figura da mãe divina, da mãe como força da natureza, no centro de tudo. É um filme surgido da raiva do estado das coisas, de preocupações ambientais e da vontade de enxergar alguma luz na mais completa escuridão. O caminho escolhido por Aronofsky, no entanto, é sinuoso e nada avesso à polêmica. Mas ela surge não por conta de sua narrativa, mas das expectativas que o próprio público projeta em sua trama. O motivo de o filme ser recebido com afagos e com pedras na mesma proporção é a natureza universal de sua mensagem – somos nós, pessoas comuns, os responsáveis pelo caos no mundo – e o modo como cada um a compreende. O diretor, por sua vez, também não alivia, mostrando que a criação é um ato de violência e selvageria, e que é impossível construir algo novo e ter alguma esperança pelo futuro sem antes deixar o que existe hoje em ruínas. Não é um filme fácil, e não se espante se pessoas deixarem o cinema no meio da projeção – em especial no momento em que o Criador, assim como na Bíblia, entrega seu único filho ao homem.

Muitos dos filmes mais interessantes da história são aqueles que geram uma discussão assim que as luzes se acendem. Seja pelo aspecto técnico (e mãe! é impecável), seja pelo trabalho do elenco (Michelle Pfeiffer em especial devora seus colegas com um olhar), seja pelo tema que ele aborda e pela forma que ele o executa. É uma narrativa difícil mas belíssima, em um filme ambicioso que, mesmo quando ameaça ceder ante o peso de seus próprios objetivos, deixa claro que tem um artista que sabe exatamente o que quer no comando. mãe! pertence aos multiplexes da mesma forma que pertence ao circuito "de arte". É uma obra criada não só para dividir opiniões, mas também para ferrar com a mente de quem se atreve a ficar até o fim da sessão – se até aí você ainda está confuso com o que Aronofsky acabou de apresentar, uma olhada no nome de cada personagem nos créditos vai sanar suas dúvidas. É como o cinema de Lars von Trier. Isso se o polêmico diretor dinamarquês soubesse fazer bons filmes.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.