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Jornalismo em quadrinhos: Desenhos para contar histórias reais do Brasil

Da AFP, em São Paulo

20/03/2017 15h13

Alexandre de Maio desenha para expressar com mais intensidade as histórias que quer contar, como se as palavras não fossem suficientes para narrar os crimes, a violência ou a exploração sexual no Brasil.

Nascido em São Paulo em 1978, ele nunca estudou jornalismo nem ilustração, mas editou durante uma década uma revista sobre a cultura hip-hop, que se tornou referência quando a internet ainda não era a avalanche de informações que é hoje.

Ele é, além disso, um dos pioneiros desta forma de fazer reportagens ilustradas em um país onde a realidade costuma estar vários passos na frente da ficção. "O jornalismo em quadrinhos tem a força do desenho, ativa a nossa memória. É possível fazer pautas muito complexas com ilustrações que nos trazem diferentes referências, de modo que têm um impacto mais rápido", assegura em entrevista à AFP.

De Maio está sentado na varanda do seu apartamento em um bairro da zona norte de São Paulo, Casa Verde, do outro lado do rio Tietê. Ao longe se vê os grandes edifícios do centro da metrópole. "Quando são temas perigosos, pode-se preservar melhor a identidade das pessoas, reconstituir cenas que não foram registradas", acrescenta.

A partir de 2010, De Maio publicou reportagens sobre questões indígenas, prisões e violência policial. Também abordou a vida nas favelas e o "poliamor", este último para a edição brasileira da "Playboy".

Em 2013, conseguiu o apoio do Prêmio Tim Lopes de Jornalismo Investigativo para viajar à Fortaleza e realizar uma reportagem sobre tráfico e exploração sexual de meninas, tendo em vista a Copa do Mundo de 2014. Trabalhou nesse projeto junto com uma repórter da Agência Pública, reconhecido meio de comunicação alternativo.

Superpoderes

Em 2016, lançou na França as versões dos seus livos "Desterro" --publicado anos antes com o escritor paulistano Ferréz-- e "Geração Favela", sobre jovens das comunidades. Junto com duas correspondentes francesas que trabalham no Brasil, apresentou "Je suis Rio" (Eu sou Rio), sobre saraus de poesia em bairros pobres.

"Com a revista eu fazia jornalismo na rua. Ia às periferias, viajava por todo o Brasil, fazia contatos. E isso me deu uma experiência e visão do país muito importantes que me ajudaram muito em meus projetos futuros", conta De Maio.

Foram publicadas 180 edições da revista "Rap" entre 1999 e 2009, com milhares de exemplares cada uma. Este gênero musical já estava se massificando no final da década de 1990, quando o grupo Racionais MC's, da periferia de São Paulo, estabeleceu um marco com mais de 1 milhão de cópias vendidas do seu disco "Sobrevivendo no Inferno", no qual protestam contra uma cidade violenta e excludente.

Eram os mesmos temas que interessavam De Maio, que também nasceu na periferia da cidade, onde continua vivendo. "O rap falava de tudo isso que eu vivia. Eu já desenhava desde pequeno, mas não queria fazer histórias de super-heróis, embora eu as adorasse, mas da vida real", conta De Maio, casado e pai de três meninas. "E eu quis usar a força do desenho para destacar o que tinha que ser mostrado", enfatiza.

Entre suas principais referências estão o trabalho do maltês Joe Sacco, autor de "Palestina", assim como o de Art Spiegelman e seu monumental romance gráfico "Maus", sobre o Holocausto, premiado com o Pulitzer de jornalismo. As primeiras edições da "Rap" traziam textos e historietas, mas em pouco tempo deixou o desenho, e o retomou anos depois, quando Ferréz o convidou a participar do comic "Desterro", que terminou de ser publicado por completo em 2013.

De Maio diz que os quadrinhos brasileiros estão passando por um bom momento e destaca o trabalho de Robson Vilalba e seu livro sobre a ditadura militar, "Notas de Um Tempo Silenciado", e de Marcello Quintanilha, que recentemente ganhou um prêmio no importante festival de Angulema, na França. "Quando eu comecei, não havia praticamente ninguém fazendo nada parecido com o jornalismo em quadrinhos. Agora há mais iniciativas", comenta.

No momento, De Maio está trabalhando em uma história sobre quadrilhas dedicadas a delitos com cartões de crédito. Ele mesmo investiga e faz entrevistas, prepara o roteiro e decide como a informação será distribuída. "O desenho se junta com o texto e tudo isso é muito poderoso. Pode-se chamar a atenção para grandes temas", reflete.

"Mas grandes poderes trazem grandes responsabilidades, como se diz no Homem Aranha", acrescenta, rindo.