Topo

Humorado e melancólico, diário relata a vida de idosos em um asilo

Rodrigo Casarin

03/01/2017 14h31

goren

Se terminei 2016 com minha lista das melhores leituras do ano, logo o primeiro livro de 2017 já se mostrou um forte candidato para entrar na próxima relação do tipo (que só sai em dezembro, é claro): "Tentativas de Fazer Algo da Vida", de Hendrik Groen.

Groen é o pseudônimo de um escritor provavelmente holandês (a obra foi escrita originalmente em holandês e publicada primeiro na Holanda). Sua história é parecida com a da italiana Elena Ferrante, um dos grandes nomes da literatura contemporânea, cuja real identidade ninguém conhece – há pouco tempo um jornalista italiano fez uma longa investigação e apontou que provavelmente seria a tradutora Anita Raja que assinaria como Ferrante.

Além do mistério quanto à identidade, outra semelhança entre Groen e a autora de "A Amiga Genial" é a inegável qualidade da escrita. Ainda que "Tentativas de Fazer Algo da Vida", publicado no Brasil no final de 2016 pela Tusquets, seja o primeiro livro assinado pelo pseudônimo, já é possível perceber que, seja lá quem for Hendrik Groen, é alguém que entende bastante do fazer literário.

O título é o diário ficcional de um senhor que também se chama Hendrik Groen. Ele tem 83 anos e relata o seu cotidiano em um asilo de Amsterdã. Como é de se esperar, pouco de realmente empolgante se passa – o livro é salvo por conta do olhar irônico, espirituoso e às vezes ranzinza do protagonista. Os momentos mais dinâmicos acontecem graças ao clube "Tô-velho-mas-não-tô-morto", formado por Groen e alguns poucos bons amigos que organizam atividades fora da casa de idosos, como jantares requintados e passeios moderados. Vez ou outra, peixes mortos no aquário ou um princípio de revolta com as regras do lugar onde vivem também movimentam a narrativa.

algo da vidaHumor e melancolia

"Dois triciclos motorizados mal conseguem passar um pelo outro nos corredores. Acrescente-se a isso o fato de que muitos residentes são meio ou completamente surdos, têm Parkinson ou tudo isso de uma vez, e você pode imaginar que aqui às vezes parece um grande espetáculo de circo. Na verdade, é um milagre que não haja mais vítimas, principalmente se considerarmos a lerdeza média de reação.

Se os motoristas pelo menos tivessem calma e mantivessem uma velocidade de cinco quilômetros por hora, não haveria tantos problemas, mas o pânico que surge a cada vez que outro triciclo motorizado aparece no corredor provoca total imprevisibilidade de todos os condutores em trânsito.

Desejo muita sabedoria ao grande timoneiro desta casa de repouso na elaboração do plano de tráfego".

Se, como é possível notar, o primeiro plano da obra é de um humor bastante agradável, aos poucos o leitor percebe que diversas tragédias típicas da velhice desfilam pelas páginas escritas por Groen. Entre uma tentativa de atividade prazerosa e outra, um dos amigos do protagonista precisa ter os dedos do pé amputados. Outra amiga, pela qual o nosso narrador nutre uma paixão tardia, aos poucos vai se mostrando esquecida e confusa, numa clara evolução do mal de Alzheimer. Enquanto isso, os companheiros de asilo, em meio a mortes frequentes, parecem se limitar a acompanhar notícias e comentá-las quase sempre com uma boa dose de preconceito e conservadorismo, bem como se intrometer na vida dos colegas e relembrar saudosamente do passado.

"Tomei uma sopa de ervilha lá embaixo. Estava ótima, mas tive que ouvir bem umas dez histórias não solicitadas sobre mães e avós que antigamente faziam sopas de ervilha muuuuuito mais gostosas. Antigamente, sempre antigamente. Vivam um pouco o presente, suas múmias!", ataca Groen no diário. Não é à toa que ele mesmo tem seus momentos de desânimo e acredita que o suicídio pode ser um bom final para a própria existência.

O maior mérito da obra é ser um diário que ao mesmo tempo cativa e mostra como a vida em um asilo é arrastada, por mais que os idosos tentem eventualmente mudar sua rotina. Passado o meio do livro, é inevitável que o leitor não sinta certo tédio e alguma melancolia, duas sensações bastante pertinentes pelo cenário da história e pelo momento da vida que retrata. "Tentativas de Fazer Algo da Vida" é divertido, sem dúvidas, mas, ao mesmo tempo, bastante triste.

Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.