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Primeira animação brasileira completa cem anos (mas ninguém mais viu)

Cena do primeiro curta de animação, "O Kaiser", dado como perdido - Reprodução
Cena do primeiro curta de animação, "O Kaiser", dado como perdido Imagem: Reprodução

Tiago Dias

Do UOL, em São Paulo

17/02/2017 16h38

A primeira animação brasileira foi exibida nos cinemas há cem anos e tudo bem se ninguém te lembrou dessa data.

Feito notável de uma história muitas vezes relegada, o curta-metragem “O Kaiser”, dirigida por Seth, pseudônimo do cartunista Álvaro Martins, sequer foi assistido pela nova geração de animadores, que nos últimos anos tem impulsionado o gênero com prêmios e até indicação ao Oscar, como foi o caso de “O Menino e o Mundo”, de Alê Abreu, em 2016.

A primeira projeção de “O Kaiser” aconteceu em 22 de janeiro de 1917, no Cine Pathé, na região da Cinelândia, Rio de Janeiro. Vinte anos depois de sua exibição, o paradeiro do filme já era desconhecido, até mesmo pelo seu autor.

Exibida em preto e branco e sem som, a charge animada passou ao largo do roteiro infantil. Se tratava de uma sátira dos desejos expansionistas do líder alemão Guilherme II. De frente a um globo, ele coloca um capacete na cabeça como símbolo de seu controle sobre o mundo, até o momento em que o globo cresce e engole o Kaiser. Meses depois, o Brasil declarava guerra à Alemanha e iniciava sua participação na Primeira Guerra Mundial.

Sabe-se também que o curta foi financiado pelo político e empresário Sampaio Corrêa. E isso é tudo. Fora o único fotograma do filme, não há informação adicional na Cinemateca Brasileira, a não ser pelo status: Desaparecido.

Pioneiro e desconhecido: Seth, ou Álvaro Martins, dirigiu o primeiro curta animado no Brasil - Reprodução - Reprodução
Pioneiro e desconhecido: Seth, ou Álvaro Martins, dirigiu o primeiro curta animado no Brasil
Imagem: Reprodução
“Isso é curioso, por que não tem fotografia, nem registro. Ficamos a perguntar: Como que será que era? Como era essa técnica?”, observa o pesquisador e professor Carlos Roberto de Souza, presidente da Associação Brasileira de Preservação Audiovisual (ABPA).

O pioneirismo de Seth, no entanto, abriu caminhos para o primeiro cine jornal de São Paulo também usar animação, com dois bonequinhos que andavam pela cidade. 

Desaparecido, mas ainda vivo

Fluminense nascido em Macaé, Seth se destacou na ilustração antes mesmo de alcançar a maioridade. Com traço delicado e perfeccionista, traçado com bico de pena, ele se embrenhou pela publicidade da famosa casa Mathias, antiga loja de roupas cariocas, sem deixar também de carregar na tinta com charges políticas nos principais periódicos da época, como “O Malho” e a “A Noite”.

Após a incursão nada lucrativa no cinema, Seth voltou para a propaganda. Morreria em 1949, dois anos antes da estreia do primeiro longa-metragem brasileiro de animação, “Sinfonia Amazônica” (1951), de Anélio Latini Filho.

Em 2013, o documentário “Luz, Anima, Ação”, dirigido por Eduardo Calvet, convidou oito animadores brasileiros para recriar em conjunto a obra desaparecida. Marcos Magalhães foi um dos colaboradores: “É uma inspiração para todo mundo, sobretudo do que poderia ser esse filme”, explica.

Um dos diretores do Anima Mundi, a principal mostra de animação da América Latina, Magalhães conheceu a história do curta quando começou a estudar a fundo. “É uma história muito bonita. O Seth fez o filme por curiosidade, por paixão, na verdade. Se você analisar os desenhos dele, são desenhos cheios de movimento, de personagens fortes”, observa.

Desde então, ele mantém acesa a ideia de um curta em homenagem ao ilustrador. O roteiro de “As Novas Aventuras do Kaiser” acompanha um fã de animações que vai à Biblioteca Nacional em busca de vestígios de “O Kaiser”. “Mas como ele é alérgico, ele tem uma crise, desmaia e tem um delírio dentro do filme que se perdeu”, revela Magalhães.

Conservação

Em uma entrevista na década de 1930, resgatada no livro “A Experiência Brasileira No Cinema de Animação”, escrito por Antonio Moreno, Seth advertia que a área da animação só se consolidaria com “um bom financiamento e material adequado para a realização”, algo que já acontecia entre os americanos. No Brasil, mesmo as informações técnicas demoravam muito a chegar.

Um problema que no centenário do curta ainda se revela atual. “Não é só em relação à animação, é uma questão do cinema antiquíssimo. De animação é mais trágico. Foram feitas poucas coisas, e dessas poucas coisas, não se tem nada”, observa Carlos Roberto.

“Sinfônia Amazônica” e “Meow”, do próprio Mario, ganhador do Prêmio Especial do Júri no Festival de Cannes 1982, são um dos poucos projetos de animações que ganharam restauração.

“Mas tem longas mais emblemáticos, como o ‘Piconzé’, (1972, dirigido por Ypê Nakashima), primeiro longa brasileiro a cores, e que também está perdido”, adverte Magalhães.

“A gente fica preocupado principalmente agora, com crise na Cinemateca Brasileira, se os filmes vão ser mantidos. Tem muita coisa lá guardada. Lugares, instituições, conhecimento e competências existem, mas sempre tem que alguém ir lá para lembrar desses filmes importantes”, observa o animador.