Denzel Washington e Robert Zemeckis decolam em "O Voo"
Você poderia pensar que Robert Zemeckis, após ter se dedicado à animação por “motion-capture” nos últimos 12 anos, ficaria empolgado a voltar à imprevisibilidade da filmagem com atores de carne e osso –aqueles momentos por acaso em que os elementos se alinham para algo surpreendente.
Mas estaria errado.
“Em toda minha carreira, eu poderia contar em uma mão”, diz o diretor, lembrando as dores de cabeça, como ter que transportar neve enquanto filmava em Moscou, e pintar a folhagem de outono em outubro em Vermont. “Toda vez em que estive em uma situação onde, por exemplo, há um ‘Oh, meu Deus, olha só esse céu! Olha esse por do sol!’ –ele nunca estava lá no momento oportuno. Nós sempre o perdíamos. É de partir o coração.”
"O Vôo" é o primeiro filme tradicional de Zemeckis desde “Náufrago”, após o qual ele, mais do que qualquer outro cineasta, desenvolveu a tecnologia de “performance capture” com filmes como “O Expresso Polar”, “A Lenda de Beowulf” e “Os Fantasmas de Scrooge”.
Em vez disso, "O Vôo" extrai sua magia principalmente das interpretações, em especial a de Denzel Washington, que estrela como aquele que talvez seja o alcoólatra mais funcional na história do cinema. Como o capitão Whip Whitaker, Washington interpreta um piloto de companhia aérea que, apesar de bêbado, de ressaca e drogado, consegue realizar um ousado pouso de emergência com um avião em rápida deterioração, no que deveria ser um voo de rotina entre Orlando, Flórida, e Atlanta.
A sequência da queda, feita com virtuosismo pelos artistas digitais dos desenhos animados de Zemeckis, exibe a manobra incomum, mas eficaz, de brevemente pilotar o avião de cabeça para baixo. A queda emocionante, que basicamente abre o filme, é o tipo de chamariz para o público, que então é atraído para um poderoso estudo do personagem de Washington, que luta com seu problema de alcoolismo enquanto seu heroísmo passa a ser questionado.
“O que mais poderia superar a queda do avião?” pergunta Zemeckis. “Mas o verdadeiro espetáculo, é claro, é a interpretação de Denzel.”
Ela é uma que muitos esperam que dê a Washington sua sexta indicação ao Oscar. (Ele ganhou por “Tempo de Glória” e “Dia de Treinamento”.) Sua interpretação é um retrato completo de um homem que acredita estar no controle, mas não está, cujo alcoolismo é propelido pela incapacidade de ser honesto consigo mesmo e com os outros.
“Um mentiroso é um mentiroso, independente de optar por mentir ou querer anestesiar a dor”, diz Washington, descrevendo Whitaker. “Ele fez a escolha específica de anestesiar a dor.”
Washington foi atraído ao projeto pelo roteiro de John Gatins (“Gigantes de Aço”), no qual Gatins vinha trabalhando desde 1999. O roteiro cerca Whitaker com um conjunto de personagens que o contestam (Kelly Reilly como a viciada em heroína em recuperação, Melissa Leo como a investigadora do acidente) ou que o apoiam (Don Cheadle como o advogado de defesa convencido, Bruce Greenwood como um velho amigo e também piloto, John Goodman como o vendedor de drogas).
Mais do que a maioria dos protagonistas, Whitaker frequentemente beira o detestável.
“Eu ouvi algumas pessoas dizerem isso, mas é isso o que é bom no papel”, diz Washington. “As pessoas dizem: ‘O que você quer que eu tire do filme?’ Eu respondo: Depende do que você trouxer. Então algumas pessoas não gostarão dele.”
Foi essa ambiguidade moral que atraiu Zemeckis, que constrói uma história que apresenta questões para o público a respeito de simpatia e o reconhecimento das próprias falhas.
Já foram feitos muitos filmes sobre alcoólatras memoráveis –Ray Milland em “Farrapo Humano”, Jack Lemmon em “Vício Maldito” e Nicolas Cage em “Despedida em Las Vegas”. Ao ser perguntado se consultou esses filmes ao fazer "O Vôo", Zemeckis respondeu: “Apenas sobre o que não fazer”.
“Se fosse apenas sobre alguém com dependência química, isso não atrairia as pessoas”, diz Zemeckis. “Não é algo com que as pessoas se identificam. Mas o fato de todo mundo –se você realmente tiver coragem de ser honesto consigo mesmo– ter falhas, isso é um tema universal. Foi isso o que eu busquei.”
O fato de "O Vôo" voar, em vez de afundar com o peso do alcoolismo, serve como prova da mão firme de Zemeckis na condução de histórias pessoais em uma tela grande. (Entre seus filmes anteriores estão a trilogia “De Volta para o Futuro”, o premiado com o Oscar “Forrest Gump, o Contador de Histórias” e “Contato”.) Essa é uma habilidade cada vez mais rara, em parte por dramas adultos proibidos para menores como "O Vôo" raramente serem feitos na Hollywood moderna.
"O Vôo", que será lançado pela Paramount Pictures em 2 de novembro nos Estados Unidos, com esperança de bilheteria sólida e indicações ao Oscar, foi feito com um orçamento de US$ 31 milhões. Esse é um valor relativamente pequeno para um filme desses, algo possibilitado em parte pelo know-how digital de Zemeckis.
“Os únicos filmes que valem a pena ser feitos são os de risco”, diz Zemeckis. “Este não é arriscado do ponto de vista do orçamento, mas é arriscado no sentido do público apreciar sua aspereza.”
O fato de "O Vôo" ser estrelado por um dos poucos astros de cinema realmente bancáveis ajuda. O cartaz do filme exibe o belo ator vestindo uniforme de piloto, o que casa de forma atraente com um ator conhecido pelo aspecto distinto de um comandante de submarino, maquinista de trem e soldado da União.
A simples experiência de estar em um simulador de voo ajudou Washington a encontrar seu caminho com Whitaker.
“O simples entrar na cabine foi tipo, ‘Uau, eu não vou voar, mas me sinto como um piloto’”, diz Washington.
O ator tem pouco interesse em detalhar o processo, que ele diz de modo autodepreciativo ser “como representar. Sério, não é tão difícil”. Mas Washington, conhecido por trabalhar arduamente, reconhece: “Você faz a lição de casa. (...) Todos nós deveríamos ser assim”.
Zemeckis diz que a interpretação de Washington é “de tirar o fôlego” e “no mesmo patamar dos grandes”.
“Não tem embolação”, o diretor diz sobre Washington. “Ele é muito sério e ele se prepara seriamente. Eu desconheço o processo, porque não é da minha conta. Ele escreve nos ensaios. Se eu digo algo, ele toma nota. Outro ator diz algo, ele toma nota.”
Zemeckis ainda acredita no cinema por motion-capture, apesar de sua última tentativa ter sido um fracasso histórico, “Marte Precisa de Mães” da Disney. Zemeckis produziu o filme, após o qual sua refilmagem por motion-capture de “O Submarino Amarelo” dos Beatles foi cancelada. O futuro do cinema, ele diz, será um “ensopado digital” de “imagens digitais móveis”.
Ele às vezes se depara com seus filmes mais antigos na TV a cabo e pensa: “Ei, até que é bom”. Zemeckis gostaria de ver "O Vôo" com esse distanciamento, mas, desde já, ele se sente satisfeito.
“Eu já gosto dele”, ele diz com um tipo de contentamento que raramente se permite. “Eu vejo as falhas, naturalmente, mas já gosto dele.”
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