Topo

Filme de Karim Aïnouz homenageia Berlim e desconstrói masculinidade

Da esq. para a dir., Jesuita Barbosa, Karim Aïnouz, Wagner Moura e Clemens Schick, equipe do filme "Praia do Futuro" - Divulgação
Da esq. para a dir., Jesuita Barbosa, Karim Aïnouz, Wagner Moura e Clemens Schick, equipe do filme "Praia do Futuro" Imagem: Divulgação

16/04/2012 12h45

O diretor cearense falou sobre seu primeiro trabalho de direção no exterior. Com Wagner Moura e Clemens Schick nos papéis principais, "Praia do Futuro" aproxima culturas e mostra a fragilidade masculina.

Poéticos e originais – assim são os filmes do cineasta cearense Karim A?nouz. Ele já dirigiu produções premiadas como "Madame Satã", "O céu de Suely" e "Viajo porque preciso e volto porque te amo"; e a mais recente, "O abismo prateado", irá estrear em breve no Brasil. Na Alemanha, A?nouz trabalha agora em seu próximo longa: "Praia do Futuro."

Rodado em Berlim, Fortaleza e no Mar do Norte, o filme conta a história de um salva-vidas que deixou o Brasil por uma paixão, a qual o leva à Alemanha e a uma nova vida. Nos papéis principais, estão Wagner Moura, Clemens Schick e o estreante Jesuíta Barbosa.

Em Berlim, Karim A?nouz falou à DW Brasil sobre sua primeira experiência de dirigir um longa no exterior e sobre as semelhanças e diferenças entre as pessoas e culturas presentes no seu novo projeto, cujo título homenageia uma praia de sua cidade natal.

DW Brasil: Karim, você morou na Alemanha em 2004 como estagiário do DAAD para fazer um projeto em Berlim. Até que ponto o fato de você ter vivido na Alemanha nessa época influenciou o projeto de Praia do Futuro?

Karim Aïnouz: Eu vim em 2004, quando eu havia acabado de fazer meu primeiro filme [Madame Satã], e aí eu tive a sorte de ter ganho essa bolsa do DAAD. Eu fiquei aqui aproximadamente de seis a oito meses. E na época fiz duas coisas: escrevi o roteiro do Céu de Suely, meu segundo filme, e comecei a fotografar muito.

Foi um período em que eu me voltei muito para a fotografia, que foi uma coisa que eu tinha feito alguns anos atrás. E aí eu fiz uma série de fotos sobre a cidade de Berlim, sobre as minhas impressões do que era essa cidade e sobre meu encantamento.

Eu saí daqui com uma vontade muito grande de voltar e fazer um filme que se passasse em Berlim. E esse projeto Praia do Futuro traz esse encantamento que eu tive com a cidade.

Quem conhece a Praia do Futuro em Fortaleza sabe que foi um projeto urbanístico que nunca funcionou. Além disso, existe uma relação muito forte da Praia do Futuro com o lá fora. É de lá que se vêem os navios saindo e os contêineres do antigo porto. Isso influenciou na escolha do tema desse filme?

Com certeza, as razões por que eu comecei a fazer esse filme vinham do encantamento que eu tinha com a cidade de Berlim, vinham de uma experiência bastante pessoal, que eu acho que está sempre nos filmes de uma maneira ou de outra, que é a experiência da viagem, de se aventurar e ir de um lugar para outro, que é o lugar do desconhecido.

E eu fiquei com muita vontade de que o lugar de onde os personagens saíssem fosse um lugar que se chama Praia do Futuro, que é um bairro da cidade de Fortaleza, um bairro onde eu passei grande parte da minha infância, da minha adolescência, um bairro de que eu tinha muitas memórias e que tem um nome bastante curioso.

E é um bairro que tinha um projeto quase utópico: um projeto residencial à beira-mar, com uma praia idílica e tropical. E com o passar do tempo o que aconteceu com a Praia do Futuro foi que ela foi se corroendo, porque há uma densidade de sal muito grande no ar. Então todo esse projeto que era, digamos assim, utópico virou um projeto um tanto distópico. Como se pode fazer um filme que tem uma relação entre esses dois lugares? E de fato, quando você olha, há uma semelhança muito grande, quase por oposição.

A Praia do Futuro é um lugar que começou como um grande sonho e esse sonho foi se corroendo pelo sal. E Berlim é um pouco o contrário. Berlim é uma cidade que tem a ver com corrosão, com a coisa da guerra e da destruição. Os prédios foram destruídos e ela foi reconstruída e foi muito bacana.

Então a Praia do Futuro tem uma relação com Berlim?

Eram dois lugares que eu achava bastante diferentes, mas quando comecei a mergulhar um pouco na ideia de fazer esse filme, eu comecei a ver uma série de pontos em comum. Berlim é uma cidade que foi construída sobre a areia, e a Praia do Futuro é uma praia arenosa, meio desértica. E tem uma coisa bonita: um é um lugar que foi se corroendo e o outro é um lugar que foi se reconstruindo meio do nada. Existe então uma aproximação por oposição, que eu acho superbonita nos dois lugares, e que eu tentei trazer para a história.

O filme é a história de um cara que é da Praia do Futuro [Donato], que foi criado e vive ali, trabalhando como salva-vidas na praia. É uma praia muito perigosa, o mar é muito traiçoeiro. E a história desse cara acontece devido a um grande amor. Ele vem para a Alemanha, para Berlim, e uma vez aqui ele se torna outra pessoa.

Ele desaparece para a família durante dez anos, deixa tudo para trás. E a segunda parte do filme é exatamente dez anos depois do começo – que é a vida dele na Praia do Futuro, a vinda para Berlim, a decisão de não voltar, a decisão de sumir – e na segunda parte do filme ele deixa para trás a família e nesta família há um irmãozinho [Ayrton], que é menor e que o tem como um grande herói, como um cara que nadava muito bem, como seu ídolo.

Dez anos depois, esse menino vem para Berlim atrás desse irmão que desapareceu. A segunda parte do filme é basicamente o encontro desses dois irmãos que se separaram durante tanto tempo.

O irmão menor achava que ia encontrar um fantasma. Quando ele veio para cá [Berlim] ele não sabia se o irmão estava vivo, como ele estava, e se ainda estava aqui. Então o filme fala muito disso, o filme começa com a partida do Donato, que é esse personagem da Praia do Futuro, e com o reencontro dele com o irmão dez anos depois.

Você trabalha com o Wagner Moura, com o Clemens Schick e com um ator cearense, o Jesuíta Barbosa. Como é trabalhar com eles em outra língua? Como está sendo feito o filme?

É muito complicado, porque o começo do filme fala basicamente da relação do personagem do Wagner, que é o Donato, com o personagem do Clemens, que é o Conrad. E eles não falam a língua um do outro. O Conrad fala pouco português, então eles se comunicam muito mais através de ação ou de pequenos gestos do que através da língua, e dez anos depois a gente encontra o personagem do Donato falando alemão, numa cidade que se tornou a nova vida dele, que é Berlim.

E você tem esse irmão que chega e que passou esses anos todos tentando descobrir onde o irmão estava e começa a aprender a falar alemão durante os anos em que ele fica para trás. Quando ele chega aqui em Berlim, o personagem do irmão mais novo fala um alemão muito tosco. Então é um filme curioso porque ele se passa em três línguas: em alemão, em inglês [língua do set] e em português – um português mal falado pelo Conrad e um alemão mal falado pelo personagem Ayrton, que é o menino, o irmão mais novo.

Parece ser um filme de semelhanças e diferenças, mais de semelhanças do que de diferenças, para dizer a verdade. Inclusive uma das locações é o norte da Alemanha, que de certa forma, tem uma grande semelhança com a Praia do Futuro, que diferentemente de muitas praias do Ceará, não tem coqueiros.

Exatamente. A Praia do Futuro é uma praia muito equatorial, uma praia de areia e água. O filme termina também numa praia que quase não tem água, uma praia em que o mar recua durante alguns momentos do dia. Quando a maré está baixa, o mar recua de três a cinco quilômetros, diariamente. A diferença em relação à Praia do Futuro é que se trata de uma praia seca, muito fria e muito cinzenta, principalmente no inverno.

O filme começa nesse lugar, que é um lugar de cor e denso, que é a Praia do Futuro e termina numa praia que é muito parecida, mas que é totalmente diferente da praia inicial. Eu queria muito terminar o filme numa praia assim. O personagem do Donato vem para Berlim – Berlim de fato se torna o lugar onde ele realiza seu sonho, onde ele reconstrói sua vida –, mas eu queria que os irmãos se reencontrassem num terceiro lugar, que é exatamente essa praia um pouco mítica, que é uma praia que a gente filmou em Sankt Peter-Ording, norte de Hamburgo.

Mas tanto a sensação de espaço na Praia do Futuro quanto no Mar do Norte une esses dois locais de uma forma muito forte. E por mais que os personagens não falem a língua um do outro, eles se comunicam. Até que ponto se pode entender este filme, seu primeiro filme no exterior, como uma forma também de entender o momento atual de globalização que o mundo vivencia, em que as diferenças se tornam cada vez mais semelhanças?

A primeira parte do filme se passa em 2004, há mais ou menos oito anos, e a segunda parte do filme se passa em 2012. O curioso é que entre esses dois momentos o mundo mudou radicalmente. Principalmente a posição que o Brasil tem no mundo. O que aconteceu nos últimos dez anos no Brasil e como o país se posiciona hoje é muito diferente de como era em 2004.

Quanto ao que você menciona das semelhanças, eu acho que hoje essa discussão que havia entre Primeiro e Terceiro Mundo, entre Sul e Norte, foi de fato bagunçada. Isso fica claro numa fala do filme quando o irmão mais novo vem para Berlim e fala que "O Brasil é a nova China", que é "tão rico quanto a Inglaterra".

Eu acho que há uma série de semelhanças, que de fato aproximam estes dois lugares no decorrer do tempo, mas é bacana você pensar que no filme, quando ele começa em 2004, trata-se de mundos bastante diferentes. Talvez essa diferença seja uma das coisas que mais atraem o personagem do Donato a não voltar, a sumir.

Filmando aqui no exterior, qual a maior dificuldade que você encontra em relação ao Brasil?

Eu acho que o que tem de curioso nesta experiência de estar filmando um filme especificamente na Alemanha, parte dele na Alemanha e parte dele no Brasil, é perceber uma coisa muito bacana de filmar no Brasil, que é a flexibilidade que se tem quando você está filmando, o improviso.

Ao mesmo tempo, filmar na Alemanha tem uma coisa bastante sedutora, que é o exercício da precisão. Existe um planejamento muito maior na hora de filmar. Existe ali uma coisa que parece um pouco dura, mas que no final é muito bacana, porque você filma com muito mais precisão.

Acho que é um privilégio poder estar fazendo um filme que se passa nessas duas culturas, porque fazer esse exercício de ponte cultural entre essas duas maneiras de fazer cinema, é muito bacana, já que você pode, de fato, ter o privilégio de aproveitar o que se tem de melhor nas duas culturas. Eu acho que a dificuldade é como se exercita essa ponte.

Na imprensa brasileira você falou que esse filme seria um filme masculino...

Exatamente, eu sempre falo isso. O meu segundo filme, que é o Céu de Suely, e o meu último filme, que é o Abismo prateado, que não foi lançado ainda, são filmes onde a gente tem, basicamente, um personagem. Os dois protagonistas desses filmes são personagens femininos e eu estava com muita vontade de fazer um filme onde os personagens principais são personagens masculinos. Um filme que falasse do universo masculino, da experiência masculina, quase como uma maneira de eu me aventurar por um terreno novo que é o terreno, enfim, de protagonistas que são homens.

Isso se espelha em mais ação no filme?

Eu acho que isso se traduz como um filme que tem bastante ação, se traduz num filme que tem bastante máquina, que tem certa violência. Ele é um filme um tanto bruto, neste sentido. Eu me lembro muito de quando eu fiz O céu de Suely, uma das coisas que se falava muito era da delicadeza dele. O que tem nesse filme de diferente, nesse sentido de tom mesmo, é que ele é um filme que tem uma voltagem mais alta, que tem uma sensação de uma luta de boxe, mais do que de um balé.

Isso não seria uma ideia antiquada de masculinidade?

Não, não sei se antiquada. Talvez o nome internacional do filme seja Heroes. Eu acho que o filme fala muito da masculinidade no sentido de olhar para os personagens masculinos quase como se eles fossem grandes heróis, infalíveis, grandiosos e potentes e, ao mesmo tempo, o que tem no filme que é muito bonito e que me interessa é ver como esses personagens se vulnerabilizam.

Eu não sei se é uma ideia antiquada ou não, mas a masculinidade como uma força monolítica, que não consegue incorporar a questão da fragilidade, da vulnerabilidade, é o que o filme tenta retratar, ou seja, como esses super-heróis – cada um dos três personagens do filme é um pouco inspirado em super-heróis – como eles se fragilizam, como se vulnerabilizam e como eles se humanizam.

São muitas referências, você falou dos super-heróis, existe o Aquaman, existe o Speed Racer, não é isso?

Sim, existe certa referência a esses super-heróis masculinos, que é o Aquaman, o Speed Racer. Existem referências a pilotos de moto, inclusive um dos nomes dos personagens, que é o irmão mais novo do Donato, é Ayrton, em homenagem ao Ayrton Senna. Então há toda uma referência a esses personagens masculinos que são figuras heróicas e infalíveis.

E o filme fala basicamente da história de um cara que é um grande herói, um salva-vidas, que é um cara que tem uma relação forte com a água e como ele comete uma falha trágica que é sumir, deixar para trás toda uma estrutura afetiva, para recomeçar. Então, no filme, há uma grande vontade de falar como a masculinidade também é extremamente frágil.

E a questão do abandono é algo que está presente em todos os seus filmes...

Acho que a questão do abandono permeia todos os meus filmes. É uma questão que é muito importante para mim, mas que eu tento retratar sem passar necessariamente por um lugar autobiográfico. Tento ver como um fato tão grande como o abandono pode gerar algo produtivo, pode gerar vida ao invés de morte.

Este filme parece ter muitas referências. Você está filmando primeiro a parte final do filme...

Estamos filmando esse filme ao contrário. Por um lado, isso é muito delicado, porque você tem que imaginar como vai ser o começo antes de ter filmado. Ao mesmo tempo há uma coisa bonita. Como estamos começando pelo fim, eu acho que a compreensão do fim do filme vai nos ajudar a entender o começo e o meio da narrativa.

E o que os atores estão achando do trabalho na Alemanha?

Esse filme tem uma coisa muito particular: os atores estão envolvidos no processo há muito tempo, então eu acho que há uma coisa bacana, que eles estão gostando muito, que é a experiência de fazer o filme, mais do que simplesmente fazer o filme.

Eu queria muito também que esse filme fosse uma experiência para a equipe, para os próprios atores. Por exemplo, os dois atores principais brasileiros estão aqui há dois meses. O Clemens foi para o Brasil já no começo de janeiro para conhecer e ter uma memória do lugar, já que a gente está filmando fora da ordem, e depois vai passar mais um mês no Brasil. Então, para os atores, tanto para os brasileiros quanto para o ator alemão, trata-se de uma questão de experimentar uma nova cultura, um novo contexto.

(Entrevista: C. Albuquerque / K. Rutkosky / A. Strohm)