Revirando baú de memórias, diretora faz documentário sobre lendário Dzi Croquettes
Pouca gente com menos de 35 anos já ouviu falar dos Dzi Croquettes, um grupo de vanguarda que combinava teatro, dança, irreverência e deboche em pleno auge da ditadura militar, na década de 1970. A atriz e diretora Tatiana Issa teve o privilégio de passar sua infância ao lado desses artistas, porque seu pai, Américo Issa, era cenógrafo do grupo. Até pouco tempo atrás, ela se espantava quando pessoas da sua idade sequer sabiam da existência deles. “Eles marcaram muito a vida de quem os viu no palco. Tudo o que eles representaram para as artes no Brasil e ninguém ter conhecimento disso? Sempre achei um absurdo”, comentou numa entrevista ao UOL Cinema por telefone de Washington, onde estava para uma exibição do filme “Dzi Croquettes” na Embaixada do Brasil (que aconteceu no final de semana passado).
Para reverter esse quadro, Tatiana resolveu fazer um documentário sobre o grupo. Ao lado de Raphael Alvarez, com quem divide o comando de uma produtora em Nova York, começou a pesquisar e tentar captar dinheiro para o orçamento. “Logo descobrimos que seria complicado. Ninguém queria investir num documentário sobre artistas homossexuais, sendo que alguns deles morreram de AIDS e outros foram assassinados. Muitas empresas ficaram com medo de se ligar ao filme”, aponta.
Contando apenas com suas próprias lembranças na cabeça e uma câmera na mão, a documentarista fez o filme sem recursos. “Foi um cinema de guerrilha. Durante um bom tempo, a equipe éramos apenas nós dois. Eu mesma ligava a câmera, ajustava a luz e entrevistava.” Apenas quando o filme estava quase concluído, o Canal Brasil entrou no projeto, ajudando na finalização, e agora lançará o documentário nos cinemas, no próximo dia 16.
Se para Tatiana um filme sobre os Dzi Croquettes era uma viagem à sua infância, para Alvarez foi uma descoberta completa. “Primeiro eu descobri que minha amiga não era louca. Que tudo aquilo que ela sempre contava sobre o seu passado, sobre crescer em meio a artistas de cílios longos e cobertos de purpurina não era mentira”, conta rindo. Para ele, fazer o filme foi como encontrar uma jóia rara. “Como eles eram um grupo que se apresentava em teatros, não havia muito registros sobre eles, como as bandas da época, que deixaram discos. A pesquisa foi muito árdua. Não foi fácil achar material das apresentações”.
Já Tatiana brinca que localizar materiais de arquivo para o filme foi uma operação digna de MacGyver, o protagonista do popular seriado de TV. “Não tinha absolutamente nada na internet sobre eles dois anos atrás. Hoje, existe muito material espalhado por aí, tudo por conta do filme”, comemora. A salvação veio através do artista plástico Marcos Bonisson que, na época do sucesso dos Dzi Croquettes, fez um documentário em vídeo. “Foi como reencontrar amigos nessas entrevistas. Vê-los falando trouxe um lado humano para o filme. Cada um contando sua história, a trajetória do grupo”, explica a documentarista. Além disso, a dupla encontrou num arquivo de um canal de televisão alemão extinto uma apresentação dos Dzi Croquettes, que foi gravada na íntegra em 1983.
Para complementar as imagens de arquivo, “Dzi Croquettes” conta também com entrevistas feitas com os membros do grupo que ainda estão vivos, como Claudio Tovar e Ciro Barcellos, além de depoimentos de artistas que viveram a época e, de uma forma ou outra, estiveram ligados ao grupo, como Ney Matogrosso, Marília Pêra, Maria Zilda, Claudia Raia, Jorge Fernando e Miguel Fallabella.
Trailer do filme "Dzi Croquettes"
A entrevista mais difícil foi com a atriz norte-americana Liza Minelli, uma espécie de madrinha informal do grupo em circuitos internacionais. “A gente ficou um ano tentando falar com ela, mas não dava certo por conta da agenda. Desde o primeiro contato ela topou falar com a gente. Ela amava os Dzi. No fim, a gente acabou conseguindo. Foi a primeira vez que uma entrevista foi gravada dentro da casa dela”, comemora Alvarez.
Documentário autoral
Ao longo da produção, Tatiana começou a cogitar de intervir em primeira pessoa na narração, acreditando que isto traria um colorido para o documentário. “Foi uma decisão muito difícil. Durante muito tempo eu não tive certeza se devia me colocar no filme. Só quando começamos a mostrar para algumas pessoas, que gostaram dessa intervenção, foi que fiquei mais segura. Acho que isso aproxima o filme do público”. O documentário é pontuado por algumas narrações da diretora, que conta sobre a sua experiência de crescer rodeada pelos artistas.
Tatiana recorda que, quando pequena, os membros do Dzi Croquettes com seu colorido de purpurina e cílios longos,para ela “eram como palhacinhos”. Ao longo dos anos, no entanto, essa memória perdeu um pouco a nitidez, embora tenha permanecido muito forte. Por isso, fazer o filme foi reencontrar seu passado. “Foi um processo muito emotivo, chorei várias vezes. Mas também encarei como a oportunidade de dar um presente para aquelas figuras da minha infância”.
Se por muito tempo os Dzi Croquettes foram esquecidos, agora, especialmente com o documentário, esse panorama pode mudar. “Há uma tendência de consumo que faz tudo passar muito rápido, faz com que a gente esqueça a nossa história”, critica a diretora. “O documentário tem a função de resgatar esse passado e lembrar a importância cultural dessas pessoas”. Já seu codiretor vai além: “A ditadura, creio, tem muito a ver com esse esquecimento. Talvez as pessoas tenham uma tendência a apagar tudo que tenha a ver com aquela época. E o cinema tem a função de resgatar isso”.
Desde sua estreia em festivais no ano passado, “Dzi Croquettes” ganhou diversos prêmios – entre eles, melhor documentário na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e no Festival do Rio – além de ser exibido em diversos países. No Brasil, a estreia do documentário deverá não apenas resgatar para os mais nostálgicos um movimento perdido de nossa história cultural, como também apresentar para toda uma geração uma vanguarda artística que muitos nem conheciam.
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