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Com apenas duas notas, Hans Zimmer musicaliza o mundo de "A Origem"

O compositor alemão Hans Zimmer autografa trilha do filme "A Origem" - Reprodução
O compositor alemão Hans Zimmer autografa trilha do filme "A Origem" Imagem: Reprodução

ANA MARIA BAHIANA

21/07/2010 07h04

São apenas duas notas, ouvidas primeiro à distância, num arpejo das cordas da guitarra de Johnny Marr, enquanto os primeiros logotipos de "A Origem" enchem a tela; e ,logo depois, em todo o seu poder, como um fortissimo de metais, percussão e teclados eletrônicos, sublinhando o título do filme de Christopher Nolan.

Ao longo das duas horas e 28 minutos da trama, estas mesmas duas notas se transformarão em temas e sub temas, às vezes uma acelerada batida cardíaca, outras vezes uma pausada respiração coletiva das cordas e metais, muitas vezes um delicado tema de guitarra, em geral pontuando momentos entre os personagens Cobb e Mal (Leonardo di Caprio e Marion Cotillard). E sempre retornando, nos instantes mais críticos, como um golpe no plexo, marcante em sua simplicidade como as quatro notas que abrem a 5a sinfonia de Beethoven, para finalmente esprair-se suavemente no derradeiro arpejo da guitarra de Marr. Esta, em essência, é a trilha que Hans Zimmer compôs para o mais novo trabalho de seu amigo e vizinho Christopher Nolan.

"Meu processo de composição é muito difícil, muito longo, muito torturado," diz Zimmer, numa conversa exclusiva para UOL Cinema. "Mesmo depois desses anos todos, eu passo dias e dias pesquisando, tentando, puxando os cabelos, dando com a cabeça na parede até achar que algo que vale a pena está sendo criado".

No caso de "A Origem", o processo começou com uma ida à praia: seu vizinho (em Malibu) Nolan convidou-o para o passeio, em parte para que os filhos de ambos pudessem brincar juntos, em parte porque queria lhe mostrar o recém-concluído roteiro finalmente pronto depois de dez anos de revisões. Zimmer levou o roteiro para ler em casa, mas a conversa sobre a ciência do sonho, assunto que fascina os dois amigos e forma a base do filme, começou ali mesmo na areia, e apontou, para Zimmer, a direção de sua pesquisa.

"Estou num momento em que a noção do tempo, da percepção do tempo e da manipulação do tempo são muito importantes para mim", afirma Zimmer. "Desde os antigos, música é, essencialmente, tempo. E o sonho é a mais perfeita máquina do tempo que o ser humano já inventou - todas as noites viajamos nela em todas as direções, sem nem perceber o que estamos fazendo, com a maior naturalidade. Lendo o roteiro minha primeira reação foi: Chris tinha feito o mais perfeito filme sobre viagem no tempo, sem que ninguém conscientemente percebesse isso."

TRAILER DO FILME "A ORIGEM"

Sabendo que a preparação e a filmagem de "A Origem" seriam longas e complexas, Zimmer propôs a Nolan que a criação e gravação da trilha fossem simultâneas às filmagens, um processo semelhante ao que já haviam feito em "Batman - O Cavaleiro das Trevas". Zimmer teria seu próprio tempo para pesquisar e idealizar os temas, usando o roteiro como guia. Ao término das filmagens, Nolan teria uma seleção de temas para usar como quisesse na obra final.

"Eu não conseguia largar o roteiro," Zimmer confessa. "Li tudo de uma vez só e depois fiquei voltando, relendo, me detendo sobre certas passagens, tentando remontar o processo criativo de Chris. O que mais me impressionou, depois daquele UAU gigantesco que todo mundo terá, com certeza, ao ver o filme, foi o quanto o texto era lindo. As pessoas não sabem o quanto os roteiros de Chris são bem escritos, e este era o melhor que eu já tinha lido. Além do óbvio apelo da trama, Chris conseguira criar uma verdadeira história de amor, profunda, comovente, bem no centro de tudo. Aquilo me comoveu tremendamente."

Como faz sempre, Zimmer partiu para uma jornada de pesquisa profunda ("é um dos privilégios da minha profissão, poder passar um ano ou mais num outro mundo, trocando ideias com as pessoas mais brilhantes", Zimmer admite). Além de muitas conversas com psicólogos, psiquiatras e neuro-biólogos sobre a natureza e a função dos sonhos, Zimmer dedicou-se a pesquisar, com físicos, as diversas propriedades do tempo com relação ao som.

"Desde o início de minha carreira eu gosto de experimentar com instrumentos e com a manipulação do som," diz Zimmer. "Para levar este trabalho ao nível da proposta de Chris, eu queria explorar como eu podia manipular as frequências sonoras em termos de tempo. Como fazer para que algumas chegassem antes e outras depois aos ouvidos do público? Como isso alteraria a experiência de ver e ouvir o filme?"

Munido deste arsenal de informação, Zimmer começou a parte mais difícil de sua obra: compor a trilha. "É sempre assim. Dias, semanas de agonia," ele diz. "Até que chega um momento em que é como se a música viesse sozinha."No caso, as duas notas.

"Não vou me comparar a Beethoven de forma alguma mas sim, algumas notas podem ser a chave para tudo," Zimmer explica. "E como saber, exatamente, que são essas e não outras notas? Como saber que essas são as notas que abrem o caminho para toda a composição? Esse é o mistério da criação. "

Zimmer escreveu variações simples para as duas notas, passou-as por alguns filtros e teclados e ligou para Nolan, que já tinha concluído as filmagens e estava montando "A Origem".

"Ele veio imediatamente," Zimmer recorda. "Quando ouviu as duas notas sorriu e disse: 'Hans, você não precisa compor mais nada. É isso'."

Para levar suas duas notas à complexa tapeçaria de experiencias auditivas da trilha, Zimmer e a equipe de engenheiros/músicos de seu estúdio Remote Control trabalharam com vários acordes, variações e sequencias das duas notas, usando instrumentos alterados, filtros, loops e sintetizadores, muitas vezes alterando, como Zimmer queria, o tempo de determinadas frequencias sonoras. O resultado foi uma série de bizarras, espantosas e empolgantes sonoridades que Zimmer batizou com nomes pitorescos como “o buraco negro” , “o pontapé” ou “o mergulho de Mombasa” .

Na etapa seguinte, a coleção de sons foi executada para uma orquestra sinfônica de instrumentos tradicionais, nos grandes estúdios de gravação de trilhas da Warner. Zimmer , que havia escrito partes da trilha para orquestra acústica, queria que, em muitos instantes, os músicos, cuidadosamente escolhidos (“escolho músicos como um diretor escolhe elenco”), improvisassem sons em resposta aos loops criados no Remote Control. Para Zimmer, um devoto e um apóstolo do som produzido por seres humanos, especialmente em grupo, não há diferença entre um sintetizador e um violoncelo ou piano:

"Todo instrumento é tecnologia. O piano foi o máximo de avanço tecnológico para seu tempo, e tem função e sonoridade específicas. O interessante é usar o máximo possível de recursos como um pintor usa cores e texturas. E nesse processo o tocar junto, ao vivo, é essencial. Há algo muito especial e um pouco misterioso que acontece quando várias pessoas fazem música juntas, no mesmo espaço. É algo parecido com o que acontece num estádio de futebol, durante um grande jogo. Cria-se algo que de outra forma não seria possível, e jamais vai ser repetido."

As trocas entre a orquestra e os loops pré-gravados deram a forma final à trilha: o grande respirar conjunto de metais e cordas sobre um tapete de anti-matéria sonora , como o resfolegar de um dragão no fundo de sua caverna, no início do tema “A Radical Notion"; o progressivo desmantelamento de um tema, desabando em câmera lenta aos nossos ouvidos, em “528491”, o monstruoso vácuo sonoro que devora as cordas, bocado a bocado, em “Mombasa”. E, de várias formas e sempre como um imenso ponto de exclamação, as duas notas – que, num momento de “528491”, são precedidas pela respiração dos músicos de sopros tomando fôlego para executar o acorde, um detalhe audível tanto na gravação quanto no cinema (“eu podia ter cortado, mas mantive. A tomada da respiração é parte do tecido sonoro. É a verdade da trilha, daquele momento. Nos lembra que somos humanos, capazes de sonhar.”)

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    No filme "A Origem" a falta de lógica do mundo dos sonhos inspira cenas

"No filme Chris misturou trucagem mecânica e digital de tal forma que isso se torna irrelevante," Zimmer elabora. "Acho que fiz a mesma coisa com a trilha. Há coisas que as pessoas vão achar que são violinos e não são. Há coisas que vão jurar que são sintetizadores e na verdade são tubas ou violoncelos. Isso é que é o interessante de um trabalho assim. "

O toque final da trilha foi a guitarra de Johnny Marr, com quem Zimmer já havia trabalhado em "Cavaleiro Das Trevas" (“ele é o som dos dedos do Batman”).

"Sou um grande admirador da guitarra," Zimmer explica. "É um instrumento fantástico - há décadas qualquer garoto ou garota pode ir ali na esquina e comprar uma Stratocaster, e cada um deles vai tirar um som diferente. É um instrumento portátil, poderoso, relativamente barato, acessível e capaz de ser completamente personalizado. Johnny tem um som único, inconfundível. É suabve, lírico, mas muito forte. Eu queria que ele fosse a voz do casal Cobb/Mal, o leitmotif da relação amorosa no coração do filme de Chris. Meu único medo é que ele não estivesse disponível."

Felizmente, estava - e Zimmer incorporou-o à orquestra de músicos trabalhando sobre os loops pré-gravados. Bastava agora adicionar o fragmento de “Je Ne Regrette Rien”, de Edith Piaf - um elemento fundamental do filme - e a alquimia estava completa. Na verdade, o tema favorito de Zimmer é “Waiting for a Train”, onde a voz de Piaf emerge quase como um fantasma de um complexo bordado de cordas e loops, sobre o stacatto implacável de uma grande sonoridade sintética, o trem do título - outro motivo importante no filme. “É muito comovente”, diz Zimmer. “Eu fico com os olhos cheios d’água sempre que escuto.”

E as duas notas, o que, finalmente, elas são?

"O mergulho cada vez mais profundo dentro de nossa mente," Zimmer explica. "Cada vez que elas aparecem estou indicando um novo nível de compreensão, a passagem para um outro estado de consciência."

ZIMMERIANAS

Sobre o futuro das trilhas musicais

"Há uma resposta estética e uma resposta pollítica para a questão da sobrevivência das trilhas. A estética eu dou com meu trabalho: o fato de que, para mim, todo recurso é tecnologia, e parte do processo de composição. A política é que, num momento em que, com a crise econômica, o ensino de música e de artes tournou-se supérfluo, é cada vez mais importante fazer e ensinar música, expor crianças e adolescentes à música, incentiva-los a aprender um instrumento, a tocar, a ouvir música ao vivo. Nossa sobrevivência como espécie inteligente pode depender disso. E o cinema tem um papel importante nisso. Hollywood tornou-se um dos grandes mecenas do nosso tempo, um dos unicos lugares onde músicos tem sempre trabalho e onde peças musicais são constantemente encomendadas.”

Sobre música sintética X música ao vivo

“Não adianta, algo acontece quando pessoas de carne e osso estão juntas no mesmo lugar, fazendo música. Não importa que tipo de instrumento e qual propósito. Tem que ter o olho no olho, o diálogo. E isso é mais importante ainda agora, que o mundo ficou tão pequeno. Gosto de me cercar de músicos do mundo todo - meu guitarrista favorito é brasileiro, Heitor Pereira (o Heitor TP que foi do Simply Red), e me sinto privilegiado, porque o que o Brasil tem de riqueza musical é um absurdo. Poder me cercar de músicos, instrumentos e música do mundo todo é um privilégiio único, que não pode ser reproduzido sinteticamente.”

Sobre a Alemanha na Copa do Mundo

“É claro que estou triste. Torci muito. Mas ainda acho que algo mágico acontece num estádio de futebol. É como uma sinfônica tocando.”