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Diretor de filme premiado em Cannes quer romper a "invisibilidade" da África e criar pontes com o Brasil

""Um Homem que Grita"" conta a história de um ex campeão de natação - Divulgação
''Um Homem que Grita'' conta a história de um ex campeão de natação Imagem: Divulgação

NEUSA BARBOSA

Do Cineweb

20/11/2010 10h00

Nascido no Chade em 1961, de onde teve que fugir depois de ser ferido na guerra civil que atormenta o país africano há mais de 30 anos, o cineasta Mahamat Saleh Haroun visitou São Paulo no começo de novembro. Veio para receber o Prêmio Humanidade da Mostra Internacional de São Paulo e também para lançar o filme "Um Homem que Grita", que venceu o Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes 2010.

A produção, que estreou nos cinemas nesta sexta (19), véspera do Dia da Consciência Negra, narra o drama de Adam (Youssouf Djaoro), um pai de família que sobrevive como salva-vidas da piscina de um hotel de luxo. Quando muda a administração do hotel, ele é rebaixado a porteiro e seu filho, o jovem Abdel (Diouc Koma), que sempre foi seu ajudante, é posto em seu lugar. Além da humilhação, o pai tem que lidar com a chantagem de autoridades, que o pressionam a pagar para não convocar seu filho para a guerra.

Radicado na França, onde estudou cinema e onde mora desde os anos 80, Haroun detalha, nesta entrevista exclusiva ao UOL Cinema, o seu processo de criação e a vocação humanista de sua obra - em que se destacam filmes inéditos no circuito comercial brasileiro, como o documentário "Bye Bye África", ganhador do prêmio de melhor primeiro filme do Festival de Veneza 1999, e também "Daratt", vencedor do Prêmio Especial do Júri do mesmo festival, em 2006.

UOL Cinema - Apesar de tratar de temas sérios, como as relações familiares e a política, o senhor opta por uma narrativa simples. Como estrutura suas histórias?
Mahamat Saleh Haroun - O fato de um filme abordar um tema complexo não obriga a que se conte uma história complexa. É preciso que as pessoas compreendam as histórias. É importante tornar as histórias simples mesmo recontando a complexidade do mundo. É isto o que eu faço. Procuro encontrar a força dentro da simplicidade e do despojamento para fazer sentir as coisas, com um minimalismo que eu prezo bastante. Faço um cinema que tenta captar a sinceridade das pessoas e das coisas. Esse tipo de cinema não precisa de muitos artifícios. Deve ser o mais simples possível e o mais honesto, mas depois apresentar várias camadas de leitura.

UOL Cinema - Quando a história começa, o eixo é o orgulho ferido do pai. Quando surge a questão da guerra civil, ele enfrenta um verdadeiro dilema ético, não?
MSH - Fico contente que você coloque essa questão, porque a escolha ética que ele deve fazer é a mesma que na verdade todo cineasta tem que fazer quando ele deve contar as histórias das pessoas ou representar um lugar do mundo. Há muitos cineastas que não se fazem mais esse tipo de questionamento, que produzem filmes apenas para gerar dinheiro, pelo espetáculo. Mas para mim o cinema é uma questão ética, de como filmar, o que há para contar, o que é preciso mostrar às pessoas. Essa questão ética, essa dificuldade de encontrar uma resposta, tem me levado a cair, num dado momento, numa espécie de consciência de minha própria condição social e, no plano político, a sentir-me responsável.

UOL Cinema - Mas o drama do protagonista não é que ele não tem realmente uma escolha?
MSH - Sim, ele não tem escolha. A tragédia mesmo desse personagem é como ele não tem escolha. E ele se coloca a questão ética mesmo assim. Ele não tem socorro possível. Porque no momento em que ele tenta procurar uma força divina que pudesse eventualmente ajudar, ele não encontra. Eu queria falar dessas pessoas que não têm escolha, que num determinado momento se tornam reféns da globalização e cometem um erro irreparável. Mesmo os políticos às vezes não têm escolha. É bom dizer que se é um homem ou uma mulher livre. É trágico que ocorra o contrário, que não se tenha a opção de fazer alguma coisa. Esse é também o limite de nossa condição humana. Há um momento de admitir que existe alguma coisa que nos ultrapassa.

TRAILER DO FILME "UM HOMEM QUE GRITA"

UOL Cinema - É por isso que o personagem é tão grande. Ele se encontra no Chade, mas creio que poderia estar em qualquer outra parte.
MSH - Absolutamente. Sua grandeza humana decorre das interrogações que estão além do Chade. Ela toca os outros porque sua grandeza e sua pequenez humanas levam todo mundo a essa realidade.

UOL Cinema - Podemos todos nos identificar com ele.
MSH - E mesmo que não nos identifiquemos, há uma espécie de empatia porque compreendemos seu problema humano, que toca o mais profundo de qualquer pessoa, de fato.

UOL Cinema - E ao mesmo tempo há algo tão peculiar ao Chade, que é essa guerra civil interminável. O senhor aborda o assunto em todos os seus filmes.
MSH - Essa guerra não termina nunca. É por isso que construo minhas narrativas como uma fotografia. Assim, há profundidade de campo, há coisas que são invisíveis, que estão fora de quadro, que estão distantes, colocando-se em perspectiva a história. Há uma violência permanente naqueles lugares mas as pessoas continuam a viver. Vemos que ela não modifica seu comportamento, embora em alguns momentos traumatize as pessoas. Mas está sempre lá, como uma serpente, um fantasma, na verdade.

UOL Cinema - O senhor não mora mais no Chade há muitos anos. O senhor se mudou por causa dessa instabilidade política e econômica?
MSH - Foi sobretudo por causa dessa guerra civil. Ela explodiu quando eu tinha 18 anos. Fui ferido por uma bala perdida e não podia mais andar. Então meu pai me ajudou a fugir para Camarões, o país vizinho, atravessando um rio. E a partir disso eu me tornei um exilado, uma pessoa errante, porque minha casa foi incendiada. Então, fui estudar cinema na França. De fato o endereço que eu tinha da escola de cinema era em Paris e eu fui para lá. A situação nunca mudou no Chade .Em Paris, encontrei amigos, me apaixonei, tive filhos. Mas quando era jovem jamais sonhei deixar meus pais. Ninguém cresce se dizendo que vai deixar o próprio país assim. E por isso, porque a guerra civil mudou o curso de minha existência e meu destino é que falo sempre dela. Penso que eu mesmo também não tive escolha. Quando levei uma bala e não podia andar, não podia dizer não. Devia apenas me salvar. Foi um incidente fundador de minha vida.

UOL Cinema - Sua família ainda vive lá?
MSH - Sim, lá tenho meus pais, minhas irmãs e um irmão. Toda a família vive lá, exceto eu. Quando parti, como disse, tinha um endereço de uma escola de cinema em Paris. Então, meu horizonte, meus estudos, foram nessa escola. E isso foi também uma maneira de dizer que estava vivo. Essa guerra civil me feriu. E essa foi um pouco minha primeira morte. Para não morrer uma segunda vez, foi necessário fazer filmes. E dizer que a barbárie que tentou me matar mas também me deu a força de contar essas histórias.

UOL Cinema - Quando uma guerra nunca termina, a tendência é que se torne invisível, que o resto do mundo a esqueça, não?
MSH - Absolutamente. Há o que chamamos de "guerras esquecidas" e "territórios esquecidos", porque em determinado momento isso se torna banal, na verdade. Então, ninguém fala mais disso, mesmo porque tudo continua como antes.

UOL Cinema - Ao mesmo tempo, é muito difícil que um filme africano chegue às telas, inclusive no Brasil.
MSH - Sim. Penso que a África é meio invisível e que ter uma imagem nas telas neste mundo globalizado é muito importante. É importante ter uma representação justa da África. Geralmente, só se tem as imagens da mídia, que são brutas. É importante levar a África às telas e lembrar que ela existe, que ela faz parte da mesma humanidade e estamos todos no mesmo barco. Também me agrada a idéia de lançar o filme no Brasil.

UOL Cinema - Por quê?
MSH - Porque o Brasil é um lugar mítico pelo sincretismo, por ter a África em sua própria identidade. Se pudermos criar pontes com o Brasil, isto me deixará imensamente feliz. Acho bom familiarizar o Brasil com a África.

UOL Cinema - E seu ator-protagonista, Youssouf  Djaoro, como o encontrou?
MSH - Ele não é profissional. É uma pessoa do meu bairro que me pediu para fazer alguma coisa e se revelou excelente. Eu o orientei um pouco e ele conseguiu me mostrar tudo aquilo. É um ator nato. Ele nunca fez teatro, que não tem nenhuma técnica, por assim dizer, e há algumas semanas ganhou o prêmio de melhor ator no Festival de Chicago contra 19 filmes do mundo inteiro. E mesmo em Cannes fiquei muito orgulhoso, porque ele foi muito elogiado. Muitos jornalistas diziam que ele e Javier Bardem eram os melhores (Javier Bardem e  Elio Germano venceram o prêmio em Cannes ). Há pessoas como ele, que tem algo no coração e também algo a dizer ao mundo. Quando se é sincero, sempre se é entendido.

UOL Cinema - O prêmio em Cannes o ajudou a fazer um outro filme?
MSH - Sim, isto acelerou a produção de meu próximo filme, "African Fiasco", que eu começo a rodar no mês de agosto do ano que vem no Senegal. E acho que acelerou algumas coisas no Chade também porque o governo criou um fundo de ajuda à criação cinematográfica, mesmo que haja no país apenas dois ou três cineastas conhecidos internacionalmente. Depois de 30 anos, o tempo da guerra civil, as salas de cinema que foram destruídas começam a ser reabertas. Há uma sala que foi renovada e que vai reabrir com meu filme em dezembro. O presidente do Chade também me pediu para trabalhar num projeto de escola de cinema.

UOL Cinema - E o novo filme, do que trata?
MSH - É uma outra história de ficção tratando de poluição, É sobre um barco que vai despejar dejetos tóxicos na Costa do Marfim e os deixa a céu aberto, contaminando diversos bairros populares. E pessoas começam a adoecer. É também um filme político sobre a conivência das autoridades corruptas e dos grupos financeiros internacionais. Um problema muito contemporâneo e que acontece em toda parte.