Documentários brasileiros do É Tudo Verdade variam nos temas, mas não escapam da mesmice; leia a crítica dos filmes
No Festival "É Tudo Verdade", as maiores atenções estão sempre voltadas para a competição entre longas e médias brasileiros. Neste ano, sete filmes concorrem ao prêmio mais disputado deste já estabelecido evento. Quatro deles são de São Paulo, três são do Rio de Janeiro.
Os temas variam do ensaio sobre o inusitado em "Aterro do Flamengo" à investigação social de "Vale dos Esquecidos", passando pelo retrato de um artista plástico em "Assim é, Se lhe Parece", de uma família da chamada nova classe média em "Dois Tempos", do político mineiro Tancredo Neves em "Tancredo, a Travessia" e de uma experiência com ginásio vocacional que pretendia revolucionar a educação brasileira nos anos 1960, em "Vocacional - Uma Experiência Humana". Além desses, ainda temos o registro das duras condições de trabalho em frigoríficos de "Carne, Osso".
São filmes de temas variados, mas com uma desagradável acomodação estética. Todos eles trabalham com estruturas semelhantes, com pequenas variações e resultados diversos. A exceção é "Aterro do Flamengo", o único média-metragem do grupo (tem menos de 60 minutos), que com um único plano fixo mostra uma situação inusitada num lugar público e a reação das pessoas que passam por ali. É um projeto arriscado, que tende a sofrer num evento desse tipo, pois após um tempo o exercício de observação do cotidiano alterado começa a cansar. Mas de certa forma é um sopro de ar fresco dentro de uma mesmice preocupante.
"Assim é, Se lhe Parece" é, de longe, o que melhor explora a fórmula "imagens de arquivo + entrevistas". Leva vantagem também pelo carisma do retratado, o artista plástico Nelson Leirner. Mas impressiona a inteligência da direção de Carla Gallo no agrupamento e disposição dos elementos dessa nova cartilha do documentário. Trabalha-se, aqui, com a convenção. Mas o trabalho é muito bem feito, dando margem até a pequenos voos de imaginação.
Também dentro da fórmula, mas procurando enriquecê-la, temos "Vocacional - Uma Experiência Humana", que se serve de um experimento que muitos pensavam ser utópico, mas que deu certo até que os militares entenderam a ameaça e deram um jeito de neutralizá-la. Toni Venturi revela, mais uma vez, que tem boa mão para documentários quadradinhos, ainda que seu longa tenha o limite da convenção menos disfarçado.
Quadrados, e só, são "Carne, Osso", que foge da armadilha "filme para vegetarianos", mas registra um problema social de más condições de trabalho de forma convencional demais, e "Dois Tempos", o lugar comum em forma de filme que retrata as mudanças na vida de uma família de um bairro de periferia, já retratada em 2000, no documentário "A Família Braz". Concentrando-se muito mais nos filhos do que nos pais, procura registrar uma ascensão social suspeita, que poderia ter existido em qualquer época, mas que o formato insinua que tenha a ver com a circunstância da época, o que permite a conclusão de que se trata de uma propaganda involuntária do PT.
Mais políticos e incisivos, "Vale dos Esquecidos" e "Tancredo, a Travessia", retratam, respectivamente, uma disputa das terras de um latifúndio no Mato Grosso e a trajetória de um político carismático. Ambos são interessantes em alguns momentos, mas sucumbem pela falta de imaginação na montagem e um ou outro momento francamente infeliz.
Os sete filmes em competição indicam um caminho relativamente conservador para o documentário brasileiro. Ao menos a tendência dos depoimentos picotados sem dó parece estar se esvaindo, o que é uma excelente notícia. A confirmação desse caminho, contudo, virá nas próximas edições do Festival.
SAIBA MAIS SOBRE OS FILMES BRASILEIROS EM COMPETIÇÃO
"Assim É, Se lhe Parece", de Carla Gallo: A diretora (de "O Aborto dos Outros") realiza mais um interessante documentário acompanhando o artista plástico Nelson Leirner em suas andanças e seus modos de pensar. As imagens de arquivo estão presentes, mas provocam um interessante efeito de imersão na obra de Leirner. Há ainda a benção que é ver e ouvir tais falas sem os habituais picotes da montagem. Pelo uso inteligente de algumas perigosas convenções do documentário atual, é o melhor entre os longas e médias da competição. | |
"Aterro do Flamengo", de Alessandra Bergamaschi: Filme de tomada única, fixa, bem aberta, que deve ser visto no cinema. Tudo que vemos está à distância. É como se observássemos uma área durante uma hora, de uma janela de apartamento. A classificação de documentário é questionável, pois parece haver intervenção. Mas será mesmo necessária tal classificação? Se for necessário para exibi-lo no festival, tudo bem. | |
"Carne, Osso", de Caio Cavechini e Carlos Juliano Barros: Do tipo de documentário que tem aversão ao silêncio. Quando não tem gente falando, tem uma trilha irritante ao fundo, salvo raríssimos momentos mais quietos. Tem montagem espertinha também, o que depõe contra, sempre. É um filme de denúncia, com depoimentos picotados - como pede a cartilha - e imagens burocráticas (às vezes artísticas) dos frigoríficos e de alguns trabalhadores em suas casas. | |
"Dois Tempos", de Dorrit Harazim e Arthur Fontes : Poderia ser confundido com uma peça de propaganda dos governos Lula. Mostra a evolução dos mesmos moradores de Brasilândia, bairro da zona norte de São Paulo, dez anos depois de terem sido mostrados em um documentário anterior. Como cinema, é fraco, é mais do mesmo, pobre esteticamente. Os personagens até despertam interesse, mas um filme não precisa ser só isso. | |
"Tancredo, a Travessia", de Silvio Tendler: No início, o pronunciamento fatídico do porta voz Antônio Britto, seguido da versão brega do hino brasileiro cantada pela Fafá de Belém. Estamos, ainda, na mais profunda e entediante convenção. Logo depois, uma encenação (com a câmera balançando desnecessariamente e os atores engessados, vale dizer) dos últimos momentos de Getúlio Vargas (vivido por Osmar Prado), a quem Tancredo foi fiel até o fim. No conjunto, mais um filme a seguir de maneira óbvia a fórmula "imagens de arquivo + entrevistas". O uso das preciosas imagens de arquivo (um trabalho de pesquisa notável) é insuficiente para elevar tal conjunto. | |
"Vale dos Esquecidos", de Maria Raduan: A narração, as imagens, a montagem elucidativa e didática com letreiros pontuais: no começo, estamos diante de uma versão mais sofisticada do Telecurso 2º grau, antigo programa televisivo. Quando entram as entrevistas, essa impressão se quebra. No fim, o filme não faz feio. Tem um tema importante e o trata com amplitude, explorando multiplicidades de ponto de vista. Mas não tem pinta de vencedor nem aqui nem na China. | |
"Vocacional - Uma Experiência Humana", de Toni Venturi: Registro de uma utopia: a experiência com educação vocacional durante os anos 1960. Por meio de entrevistas com ex-alunos da escola em que estudou, no Brooklin, bairro de São Paulo, o diretor faz uma viagem pelo tempo e, por tabela, uma análise da baixa qualidade do ensino público brasileiro. As instituições de educação, salvo raros exemplos, não fazem o básico, não ensinam a pensar. O ginásio vocacional era uma saudável exceção, mas foi interrompido pela ditadura militar. |
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